A democracia e liberdade conquistadas há cinquenta anos encontram se sob ameaça. Esta ameaça manifesta-se, em parte, através de narrativas mediáticas enviesadas e discursos revestidos de uma aparente neutralidade — tantas vezes propagada por conservadores autoproclamados “moderados” — apresenta a extrema-direita e a alegada “extrema-esquerda” como forças equivalentes, disruptivas e ameaçadoras para o funcionamento da democracia.
Um excelente exemplo destes chamados “moderados” é o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Carlos Moedas, que veio a público por diversas vezes afirmar e defender que a extrema-direita e a extrema-esquerda são “igualmente más” e que representam “cancros da democracia”. No entanto, mesmo depois de condenar as agressões ao ator Adérito Lopes, não deixou de insistir nessa equiparação, afirmando que ambos os extremos são simetricamente violentos.
A canção "Cuidado com as Imitações", do Sérgio Godinho, com argúcia poética e acutilância crítica, previne-nos contra os disfarces ideológicos e contra aqueles que, sob aparência de novidade ou autenticidade, reproduzem formas de pensamento retrógradas, intolerantes e autoritárias. É preciso saber distinguir entre o original e a cópia, entre a crítica genuína e a encenação demagógica. As imitações de hoje não se fazem apenas em estilo: fazem-se também em discurso, em aparência e em ideologia. E é precisamente por isso que devemos redobrar a atenção. Porque, ao contrário da suposta “extrema-esquerda”, que não ameaça democracia, a extrema-direita constitui um risco real — e a sua ascensão não deve ser confundida com uma mera alternância política. É, antes, um sinal de alarme que exige lucidez histórica, responsabilidade ética e ação cidadã.
Manter a ficção da simetria entre “extremos” constitui, portanto, uma forma de desresponsabilização cívica e de cegueira estratégica. Ao colocar no mesmo plano atores com naturezas, objetivos e métodos profundamente distintos, banaliza-se o perigo real que representa a extrema-direita e deslegitima-se qualquer tentativa de transformação progressista.
A extrema-direita, com o seu pendor para o autoritarismo, a exaltação nacionalista e a nostalgia de uma ordem social hierarquizada e excludente, opera sobre um lastro de medo, ressentimento e intolerância. Alimenta-se de pulsões reacionárias, procurando reverter conquistas civilizacionais sob o pretexto de “restauração de valores”. A sua ação política tende a corroer o tecido democrático, promovendo discursos de ódio, políticas securitárias e um revisionismo histórico inquietante. Uma expressão reacionária de que Theodor W. Adorno identificou como “carácter autoritário” — uma disposição psicológica moldada por pulsões regressivas, fixada na exaltação de hierarquias sociais, étnicas e culturais, e propensa à violência simbólica e material contra os sujeitos subalternizados. Esta deriva política não é uma aberração marginal, mas uma forma de contrarrevolução preventiva, cuja função histórica é a de restaurar, sob novas roupagens, os dispositivos de opressão da ordem burguesa, ameaçada pelas contradições internas do modo de produção capitalista.
Pelo contrário, a esquerda radical inscreve-se, regra geral, num horizonte de justiça social, redistribuição equitativa e defesa dos direitos coletivos. A sua radicalidade procura incluir as pessoas, e não excluir ou perseguir. A suposta “ameaça da extrema-esquerda” funciona, em muitos contextos, como um espantalho discursivo – uma construção abstrata, desprovida de materialidade política, mas útil para manter o status quo e desmobilizar os movimentos de contestação. Por outro lado, a verdadeira ameaça à democracia avança pelas margens da extrema-direita, com projetos de poder delineados e uma retórica inflamada através de discursos demagógicos.
Em suma, a ilusão de um extremismo simétrico é uma operação ideológica que carece de fundamento material e teórico. Exige-se, por isso, uma crítica radical — que não se limite a denunciar os efeitos, mas vá à raiz da produção das formas sociais. Apenas com tal rigor analítico poderemos preservar o sentido histórico da democracia enquanto forma de antagonismo e garantir que o seu futuro não seja usurpado pelas forças da barbárie.