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Igreja: uma história verdadeira

Ficou completamente muda, levantou-se do confessionário, onde estava ajoelhada, e foi embora a chorar “baba e ranho” e a sentir-se a pior pessoa deste mundo. A partir daí, passou a odiar Padres e Igrejas e deixou de praticar os atos religiosos. Sofreu muito. Rezava sozinha.

Em 1967, uma jovem rapariga que sempre foi muito religiosa, embora os seus Pais não fossem fanáticos – sobretudo o seu pai que nunca a obrigou a nada –, foi educada na religião católica. Durante alguns anos, até às suas 17 primaveras, foi crente praticante e participava em todas as atividades religiosas da sua paróquia. Vivia com muita fé e o período da Páscoa sempre exerceu sobre ela um fascínio maravilhoso. A história de Jesus Cristo e a sua personalidade, de paz e justiça, era para ela o máximo da fé. Chegou a fazer parte do coro da Igreja e sabia as cantorias todas de cor. Muitas vezes os seus familiares diziam que ela tinha jeito para ser freira. Ela nunca sentiu qualquer vocação nesse sentido, pois gostava de rapazes e sonhava casar.

Entretanto, começou a ficar revoltada contra muitas coisas. Já não obedecia tanto à mãe e não permitia que a maltratassem. Certa vez, depois de ser agredida reagiu com violência e ficou muito preocupada, sofrendo horrores por ter sentido essa vontade de responder à agressão com vingança. Decidiu contar ao Padre da sua paróquia, em confissão, o que estava a sentir e pedir orientação para serenar aquele ímpeto desconhecido até aquela altura. Ele ouviu tudo o que ela queria dizer e depois, ao contrário do que ela esperava, começou a fazer-lhe perguntas do foro íntimo, algumas para ela até desconhecidas, e a oferecer-se para ajudá-la a conhecer-se melhor desse ponto de vista. Ela ficou tão envergonhada e magoada no seu ser mais íntimo, como nunca lhe tinha acontecido na vida.

Ficou completamente muda, levantou-se do confessionário, onde estava ajoelhada, e foi embora a chorar “baba e ranho” e a sentir-se a pior pessoa deste mundo.

A partir daí, passou a odiar Padres e Igrejas e deixou de praticar os atos religiosos. Sofreu muito. Rezava sozinha. Pedia perdão a Deus. Sentia-se confusa e cada vez mais só, mas nunca mais foi a mesma pessoa crente na Igreja. Aquele Padre estragou a sua fé e colocou aos seus olhos uma outra realidade, que mais tarde veio a saber que se passava atrás dos confessionários e da qual algumas mulheres gostavam. Ainda participava nas missas dos funerais e batizados. Foi mesmo madrinha de algumas crianças, hoje todas mulheres adultas, mas o seu sentimento de religião ficou ferido de morte.

Esta história verdadeira está incluída no meu último livro “A Vida é um Presente” e demonstra que a Igreja desde há muito tempo tem no seu interior problemas muito sérios. A Hierarquia sempre fechou os olhos e muita gente também. Os casos agora divulgados são a ponta de um icebergue, e, se é para fazer uma purga séria, têm que existir medidas sérias também. Se os homens que dirigem a Igreja católica, a todos os níveis, não participarem neste debate, de forma livre e frontal, tudo vai cair no esquecimento e a hipocrisia vai continuar. Se as mulheres religiosas forem sempre tratadas como seres menores e ficarem esquecidas a fazer as tarefas que os homens decidem por elas, então é que a hipocrisia será maior, por mais que se façam discursos aparentemente progressistas.

Este é um problema de toda a sociedade, porque atinge as pessoas que algum dia acreditaram que o mundo seria mais justo, com uma Igreja verdadeiramente honesta ao serviço dos mais pobres e desfavorecidos, como foi a missão de Jesus Cristo na terra que será lembrado daqui a dias quando se comemorar a Páscoa. Faça-se justiça e deixem-se de subterfúgios para ficar tudo na mesma.

Artigo publicado em dnoticias.pt em 01 março de 2023

Sobre o/a autor(a)

Deputada na Assembleia Municipal do Funchal. Antiga dirigente sindical e deputada regional
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