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As ideias de Merkel sobre limitações de soberania na zona Euro

Merkel põe em primeiro plano os interesses económicos da Alemanha das elites e tem uma visão limitativa da Europa, desinteressando-se por completo da questão social. É este o modelo europeu que defende.

A comunicação social portuguesa tem dado relevo a afirmações de Angela Merkel, na qual a chanceler alemã teria ameaçado os países incumpridores do Pacto de Estabilidade e Crescimento com a perda da soberania. Estas notícias fizeram ressurgir na opinião pública portuguesa ecos do velho fantasma da Alemanha nazi, como o país que quer agora obter através da economia o domínio da Europa que não obteve nas duas guerras mundiais. Ora, na actual situação europeia não há nada pior do que ressuscitar tempos passados e portanto aqui fica um breve apontamento daquilo que Merkel disse.

Tratou-se de uma entrevista, na televisão, ao canal público ARD, tendo como pano de fundo o problema da Grécia. A questão punha-se no seguinte contexto: no decurso da entrevista, Merkel tinha acabado de defender a ideia de que era no interesse da Alemanha, como maior beneficiado do Euro, não deixar que a zona Euro se desfizesse, o que implicava que a Alemanha não deveria deixar a Grécia falir. Se o fizesse, tal seria, segundo Angela Merkel, como que um sinal dado aos mercados de que bastava atacar com alguma intensidade os países da zona euro, que estes cairiam uns atrás dos outros.

O entrevistador respondeu a esta ideia com outra pergunta: se não seria igualmente mau dar aos países membros o sinal contrário. Ou seja, por pior que um país membro se comportasse no plano nacional, algum dia lá estariam os países ricos que ainda existem na UE para lhe pagarem as dívidas.

Ao que Merkel respondeu que esse também é um sinal falso e que se chegava aí a um ponto com significado para o futuro. Segundo Merkel, que possibilidades existem hoje na zona Euro de obrigar um país a aplicar aquilo que se encontra estabelecido no Pacto de Estabilidade e Crescimento, aquilo a que os países se obrigaram, aquilo que se espera que façam? Se se reparar, então ver-se-á que não existe nenhuma instância na Europa que efectivamente possa intervir, quando um país não cumpre nada daquilo a que se comprometeu. E por isso Merkel disse que é preciso trabalhar para realizar alterações do contrato, para que pelo menos seja possível apresentar queixa contra um país no Tribunal de Justiça da UE, e que, por assim, dizer, o país tenha que abdicar de uma parte da sua capacidade, da sua soberania, no sentido de que uma instituição europeia determine, que quem não cumpre possa ser obrigado a fazê-lo. Tal será necessário no futuro, tal será, portanto, o consumar da União Monetária.

E, mais à frente na entrevista, repetiu a ideia: para Merkel, aquilo de que se trata é que aqueles países que não cumpram as obrigações que assumiram, ou seja: não se endividarem em mais que 3% e não terem um endividamento global de mais de 60%, ou tendo-o, não o reduzam, que aqueles países que violem estas regras, tenham em primeiro lugar que abdicar de uma parcela da sua soberania, (nota: no sentido de terem que aplicar na ordem interna uma decisão comunitária obrigatória) quando se verificar que não cumpriram as suas próprias obrigações.

Foi neste contexto que Merkel usou a expressão. Falou numa perda parcial de soberania, mas com o significado de obrigatoriedade de aceitação, por parte do Estado-membro, de decisões de instâncias europeias e para já referiu-se, apenas e concretamente, ao Tribunal de Justiça, Ou seja, se assim se quiser, Merkel coloca a questão numa perspectiva jurídico-civilista. Na sua visão, o Euro é um contrato que, assim como dá vantagens, também supõe para os contratantes determinadas obrigações. Quem não cumpre as obrigações a que se comprometeu, não cumpre o contrato. Ora, quem não cumpre o contrato fica a beneficiar de vantagens ilegítimas, porque não suporta o peso das respectivas obrigações e ainda beneficia do facto de os outros cumpriram as suas. Logo, terá que ser possível obter de uma instância europeia uma decisão vinculativa, que ponha termo a esta situação e obrigue o Estado faltoso a cumprir aquilo a que se comprometeu. Só assim é que, na opinião de Merkel, a Europa e o Euro podem funcionar no futuro.

Merkel falou, pois, em perdas de soberania neste sentido. Ora, que se trata de uma visão limitativa da Europa, certamente, porque reduz toda a complexidade da construção europeia à moeda única e desinteressa-se por completo da questão social. Que Merkel põe em primeiro plano os interesses económicos da Alemanha, também é verdade, embora mesmo aqui se tenha que ressalvar que os interesses que Merkel representa são os interesses da Alemanha das elites e só reflexamente da população alemã. Que os países economicamente mais poderosos, e não só a Alemanha, terão neste contexto mais vantagens que os outros, também não se pode negar. Mas estes são, exactamente, os verdadeiros problemas, ou seja, saber se o modelo europeu defendido por Merkel responde às necessidades do futuro, e em que medida. O resto são questões do passado, que não vão resolver os problemas do futuro.

João Alexandrino Fernandes

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário em Tübingen, Alemanha
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