Está aqui

#ICantKeepQuiet

No próximo dia 11, passa 10 anos que as mulheres portuguesas finalmente alcançaram, em referendo popular, o direito a poder abortar até às dez semanas, de acordo com a sua vontade.

Lembrei-me disto a propósito do dia 11 de fevereiro de 2007, uma data importante na nossa história. No próximo dia 11, passa 10 anos que as mulheres portuguesas finalmente alcançaram, em referendo popular, o direito a poder abortar até às dez semanas, de acordo com a sua vontade. Claro que são elas as primeiras a beneficiar desse direito alcançado, mas essa conquista é uma conquista da sociedade portuguesa, na sequência de uma longa e dura luta de vários anos que envolveu organizações de mulheres, organizações de defesa dos direitos sexuais e reprodutivos, organizações sindicais e partidos, para além de muitas pessoas que individualmente entenderam que estava em causa a defesa do direito à escolha, numa questão tão importante como é a maternidade.

No final desse dia 11 de fevereiro de 2007, quando foram apurados os resultados e o SIM ganhou, vi jovens mulheres emocionadas que se abraçavam e que diziam que para elas esse era o seu 25 de Abril! Para nós que tínhamos vivido o 25 de Abril e que desde os anos 80 tínhamos abraçado a causa da descriminalização do aborto como uma das grandes prioridades na agenda dos direitos das mulheres, essa data correspondeu a um 25 de Abril que estava por cumprir para as mulheres portuguesas: o poderem decidir sobre o seu corpo.

Desde então, ao longo destes dez anos, por diversas vezes os grupos de mulheres e organizações que haviam estado do lado da escolha tiveram que de novo reunir, discutir e preparar-se para responder às investidas dos grupos anti-escolha que não deixaram de se mobilizar para reverter a lei da descriminalização do aborto, usando todos os meios inclusive a mentira. Aquilo que sempre soubéramos – que não há direitos definitivamente adquiridos – vivemo-lo na prática. Não se pode baixar a guarda; há que estar sempre alerta e defender os direitos alcançados.

Não admira pois que Donald Trump, no seu primeiro dia na administração americana, pomposamente rodeado de homens e sentado a uma secretária tenha assinado um conjunto de três diplomas que deitam por terra as políticas do seu antecessor. “Sabem do que se trata. Há muito que falamos disto” diz arrogante para os jornalistas presentes enquanto exibe a sua assinatura. Um desses diplomas decreta o fim do financiamento às ONG que tenham programas relacionados com o direito à contraceção e aos cuidados pós-aborto. A partir de agora, todas as ONG de direitos sexuais e reprodutivos e de saúde materna no estrangeiro que incluíssem o aborto seguro como parte dos seus serviços de planeamento familiar deixarão de receber qualquer apoio da Agência para o Desenvolvimento Internacional dos EUA, um dos maiores apoios à assistência ao desenvolvimento internacional.

Donald Trump adepto dos ativistas anti-aborto sempre se definiu como “pro-life”, na senda de Ronald Reagan e das suas políticas conservadoras. Nos seus discursos sempre assumiu que queria “defender todos os Americanos, incluindo os não-nascidos…” e a sua intenção de “promover o respeito por toda a vida humana, incluindo as vulneráveis crianças não-nascidas no estrangeiro” intenções passadas à prática logo no seu primeiro dia de administração.

Ligando os financiamentos a essas ONG como impostos pagos pelos americanos, canalizados indevidamente, quando deviam ser para algo que possa “make America great again!”, Trump responde aos conservadores no Congresso e aos ativistas anti-aborto, enquanto dá uma machadada fatal às ONG de mulheres em países em desenvolvimento. A vice-presidente e diretora da Marie Stopes International apelidou de catastrófica esta decisão de Trump, pois “se se retirarem os serviços de aborto seguro do pacote de cuidados de saúde reprodutiva, isso irá expor as mulheres a situações de risco.” “Tentativas para parar o aborto através de leis restritivas nunca irão resultar, porque não eliminam a necessidade das mulheres de abortar.” Igualmente Nancy Northup, presidente e CEO do Center for Reproductive Rights disse: “Esta medida de Trump só irá aumentar gravidezes não desejadas, abortos inseguros, mortes maternas e crianças recém-nascidas”.

A organização “Catholics for Choice” num comunicado emitido após a assinatura deste diploma chamado de Mexico City Policy, mais conhecido por “Global Gag Rule” afirma que “é um enorme retrocesso no que concerne à saúde reprodutiva das mulheres em todo o mundo e à sua capacidade de terem acesso a uma escolha informada”.

Num artigo intitulado “Uma Gag Rule de Trump não tem lugar em 2017” na revista “Rewire” Serra Sippel afirma: (a Gag Rule) “ vai ser um ataque mortal às mulheres e meninas, globalmente. Não há lugar para uma Trump Gag Rule em 2017 e é por isso que não podemos aceitar isto como um dado…. Grupos ligados à saúde e ao desenvolvimento têm de se levantar e protestar.”

“Durante demasiado tempo, demasiados grupos de desenvolvimento e de saúde global estiveram numa atitude passiva, mas esses dias acabaram. Mulheres e meninas em todo o mundo podem ser as primeiras vítimas desta administração, mas não se enganem. Isto é só o começo.”

“O Presidente Trump e os seus ataques às mulheres vão-nos bater a todos quer a nossa causa seja as mudanças climáticas, a paz e a segurança, os direitos humanos, ou a educação e empoderamento das raparigas. Todas as questões que nos preocupam estão em risco de cortes no financiamento ou políticas prejudiciais. E é por isso que temos todos e todas de nos levantar e lutar.”

Foi isso que levou milhões de mulheres e homens em todo o mundo a ir para a rua numa grande marcha global, com o apelo a que a luta continue nas comunidades locais. Uma das oradoras da Marcha em Washington gritava para os milhares de mulheres presentes “Are you ready for the fight?” e outro grupo entoava “I can´t keep quiet!”. Uma menina – Sophie Cruz – acompanhada pelos pais e um irmãozito de colo dirigiu um discurso inspirador à multidão e finalizou-o com um apelo, primeiro em inglês e depois em espanhol, a língua dos seus pais imigrantes: “Não tenham medo porque não estamos sós!”

Está na hora de lembrar estas palavras. Ativistas das várias lutas pelos direitos humanos. Pela Democracia, pela Liberdade, pela Justiça, pela Paz, pela Igualdade.

Artigo publicado no blogue acontradicao.wordpress.com

Sobre o/a autor(a)

Professora aposentada, feminista e sindicalista
(...)