A presença de Biden num cenário de guerra no estrangeiro seria inusitada se Israel não fosse a sua principal base militar na região, se não houvesse eleições e se a comunidade judaica nos EUA não fosse um apoio disputado com Trump, e se uma boa guerra com entoações religiosas não fosse a forma de dividir os republicanos, perdidos para o apoio às lonjuras da Ucrânia. E chegamos ao facto notável de o Presidente assistir a um briefing militar, falar de contenção quando as bombas caem sobre Gaza e, em todo o caso, regressar com a certeza da escalada genocida que autorizou. Biden precisa da guerra por temer que a frente interna não favoreça o partido democrata, que, na realidade, usou esta escapatória desde a segunda metade do século XX: em caso de risco eleitoral, convoca-se a besta. Como aqui se junta a necessidade do primeiro-ministro israelita, em dificuldades no seu golpe judicial, para se livrar da acusação de corrupção que o pode levar à cadeia, estão na mesa todos os ingredientes para a guerra. Será guerra.
E guerra sempre houve
Smedley Butler (1888-1940), o general dos Marines norte-americanos cujo nome foi usado para batizar a base de Okinawa, pela consideração que MacArthur tinha pela sua memória, deixou um autorizado testemunho do que foi a política externa do seu país. No seu livro, “A Guerra como Extorsão”, contou como se sentiu ao fim de uma vida na carreira militar: “Passei 33 anos e quatro meses no serviço ativo do corpo mais ágil das Forças Armadas deste país, os Marines. Subi todos os degraus desde subtenente até general de brigada. E durante este período fui frequentemente o homem de mão das grandes empresas, de Wall Street e dos banqueiros. Em resumo, fui um gangster ao serviço do capitalismo. Tinha dúvidas na época. Agora tenho a certeza. Ajudei a tomar conta das Honduras, para as companhias norte-americanas produtoras de fruta, em 1903. Ajudei a tomar conta do México, para os interesses petrolíferos americanos, em 1914. Ajudei a fazer do Haiti e de Cuba lugares respeitáveis, onde os homens do National City Bank fizessem os seus negócios. Ajudei à violação de meia dúzia de repúblicas da América Central para benefício de Wall Street. A lista das extorsões é longa. Ajudei à purificação da Nicarágua para os Brown Brothers em 1909-12. Levei a luz à República Dominicana ao serviço do interesse das companhias açucareiras, em 1916. Velei para que a Standard Oil pudesse fazer o seu caminho sem ser incomodada. Durante todos estes anos, estive à cabeça de um negócio. Quando penso nisso, sei que poderia dar conselhos a Al Capone. O seu domínio mafioso limitava-se a três bairros, o meu a três continentes.” Não foi o único dirigente militar ou político do seu país a mostrar esta franqueza. Um Presidente referiu-se ao perigo de as decisões políticas serem condicionadas pelo “complexo militar-industrial” e, malgrado esse lamento, a guerra continuou a ser a política pelos mesmos meios.
Dar carta-branca a Netanyahu para um genocídio é agora mais arriscado do que em todas as guerras anteriores que sustentaram o apartheid naquela região
No entanto, as derrotas acumularam-se. Em agosto de 2021, depois de um acordo estabelecido por Trump e concluído por Biden, as tropas norte-americanas retiraram-se do Afeganistão. Pouco se ouviram os que, 20 anos antes, tinham gritado “para o Afeganistão, todos e em força e não há nenhum ‘mas’” — mas calaram-se quando o poder foi entregue aos talibãs. Fosse Bin Laden vivo e ter-lhe-iam dado as chaves da cidade.
O novo século americano
Duas vezes derrotada, no Vietname e no Afeganistão, a direção imperial exibia uma degradação patente. “A NATO está em morte cerebral”, acrescentou Macron, pouco dado a subtilezas. Até que, meses depois da fuga de Cabul, veio Putin, iludido sobre si próprio, lançar-se à reconstituição do império czarista e criando a oportunidade para que Washington destroçasse a política energética da Alemanha, recompusesse a NATO e realinhasse o seu campo. Biden tornou-se o arauto da recomposição imperial graças às oportunidades que lhe foram concedidas. A besta faz fortes as fracas gentes, até um dia.
Deste modo, recuperou o projeto dos neoconservadores, que, duas décadas antes, tinham prometido um “novo século americano”. O futuro Presidente Bush, com Dick Cheney e Donald Rumsfeld, que viriam a ser os seus secretário da Defesa e vice-presidente, como ainda Francis Fukuyama, proclamavam já em 1998 a necessidade de ocupar o Iraque, ainda nem se tinha falado da fraude das “armas de destruição massiva” e de outras teorias da conspiração. Era só o petróleo e tanto bastava. Um dos autores desse apelo, Robert Kagan, explicava no seu livro “A Política Guerreira” que é preciso “levar a prosperidade às zonas atrasadas do mundo graças à doce influência imperial da América”. O Afeganistão foi o primeiro lance desta política, o Iraque o segundo — um foi devolvido aos talibãs e o outro entregue ao Irão, tudo falhou.
Por isso o “século americano” joga-se agora em Israel e na sua desejada aliança com alguns países árabes, a Arábia Saudita e o Egito. Aí está o pilar atual da reorganização deste poder mundial. É a hora da besta, com um hospital bombardeado em Gaza, os jornalistas mortos e milhões de pessoas a morrerem à sede. Biden saiu de Telavive certo de que a “doce ordem imperial” será cumprida e pode ser o seu pior erro: dar carta-branca a Netanyahu para um genocídio é agora mais arriscado do que em todas as guerras anteriores que sustentaram o apartheid naquela região.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 20 de outubro de 2023