Há um subgénero literário de que gosto, não sem um certo embaraço.
A chamada “história/narrativa alternativa”.
Não tem contribuído para grande literatura, mas tem feito pensar e, ao mesmo tempo, confortado ou agitado muita gente.
A mim tem.
Em comum nestas histórias há a pergunta “What if...?”, “E se...?”
E se uma mulher austríaca chamada Klara tivesse, em 20 de abril de 1889, perdido o seu quarto filho, nascido raquítico e prematuro, tal como já perdera Gustav, Ida e Otto? Mas, não, Adolf, milagrosamente sobrevive.
E se os aliados não se tivessem aliado e a Alemanha nazi tivesse ganho a guerra?
E se, no dia 11 de fevereiro de 1965, um cidadão português mas com passaporte brasileiro acompanhado de uma cidadã brasileira tivesse sido detido logo ali em Badajoz por ser portador de documentos falsos e assim impedido de seguir viagem?
E se...?
A lista continua e é praticamente infindável.
Dito isto, deixem-me contar-vos uma pequena história pessoal.
Casei cedo, era ainda estudante e o noivo tinha começado a trabalhar há pouco tempo. Não tínhamos condições para “sair de casa dos pais”. Depois nasceu uma filha e depois outra, fomos ficando. Quando o meu pai morreu não deixámos a minha mãe sozinha. Quem cozinhava lá em casa, depois de vir da escola, era a minha mãe que era uma cozinheira razoável, mas sempre contrafeita.
Em determinada altura comunicou-nos que ia fazer obras na cozinha e que durante esse período teríamos de arranjar uma solução. Por exemplo, irmos logo ali na rua ao lado, ao 007 que era de um senhor muito simpático, que tinha uma cozinheira negra, também muito simpática, que também fazia compras na mercearia do beco.
E assim foi.
Já não me lembro de quanto tempo duraram as obras, mas lembro-me como se tivesse sido ontem que, terminados os trabalhos, com uma cozinha, mobiliário e utensílios totalmente renovados, tudo a reluzir e a cheirar a novo, a minha mãe olhou em volta com um brilho de orgulho nos olhos e decretou que não voltaria a cozinhar.
E foi assim, que continuámos clientes do senhor Manuel, juntando a nossa mesa de almoço e jantar à de outros dois fiéis comensais, uma mesa cheia de 7 pessoas.
Foi assim que conheci o Tó Zé. O Tó Zé André. E o João José. O João José Cardoso.
Conhecer com esta intimidade da mesa partilhada.
Porque, na verdade, há muito que conhecia o Tó Zé. De vista. E que vista! Quem, em Coimbra, não o conhecia, sempre em missão, de Doc Martens e de negro vestido? Uma bonita figura. Apesar de, ao tempo, aquela estética me deixar desconfortável.
Afastava-me dele a política, que eu então tinha pouca paciência para o que via tranquilamente como o seu “radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista”. Mas o Tó Zé, fazendo de conta que não sabia de onde eu vinha, que heranças carregava, arranjava sempre maneira de me falar no PSR e no Combate e no Bloco e nas atividades que ele, com constância, congeminava e a que dava forma falando delas, sempre com convicção, quase sempre em media res, partindo do princípio de que sabíamos perfeitamente do que é que ele estava a falar, que concordaríamos com aquilo que se propunha organizar e que alegremente participaríamos em todo o processo, com um entusiasmo sublinhado a risadas que só não era instantaneamente contagiante porque a primeira dificuldade era percebermos, justamente, de que é que o Tó Zé falava. Não imaginam a complexidade do exercício quando, à discussão, se juntava o João José...
Sejamos honestos, o Tó Zé era uma pessoa especial, com tanto de cativante quanto de desesperante. Mas nós, as pessoas suas amigas, que conseguíamos decifrar o emaranhado de palavras que se agarravam umas às outras e às vezes se desprendiam das ideias que as sustinham, nós sabíamos que os repentes, os silêncios, as ausências sazonais, as mensagens a desoras não se conseguiam sobrepor ao tipo que estava, por princípio, sempre ali, ao organizador incansável, ao mobilizador, ao construtor de pontes, ao fazedor.
Nos nossos almoços e jantares, a que se juntaram todas as festas de anos, incluindo o mistério de quando fazia anos e quantos fazia, todas as celebrações de todos os nascimentos e sucessos e vitórias, sim, também as do futebol (e lá falava o Tó Zé do Ferroviário de Lourenço Marques/Maputo...), mas igualmente em todos os momentos em que, juntos, lambemos as feridas e afogámos as mágoas das mortes, das derrotas, das partidas, o Tó Zé amigo e o Tó Zé camarada eram uma certeza.
Só que não.
Como percebemos todas e todos, de forma brutal, no início deste ano.
Nestes 6 meses e 5 dias, têm sido muitas as vezes em que, a subir até à Portagem, a percorrer a Ferreira Borges, a descer a Visconde da Luz, a atravessar a 8 de Maio, tenho jurado que avisto o Tó Zé, tenho olhado para a esplanada do Nicola ou do Visconde e vejo o blusão negro e um sujeito de olho pisco a clicar nas teclas de um telemóvel jurássico, quase colado ao nariz.
E, invariavelmente, assalta-me a pergunta: e se...?
E se quando, no seu último sábado, encontrámos o Tó Zé e ele nos disse que desta vez a gripe lhe batera forte e que não se conseguia ver livre dela, nós tivéssemos ficado mais tempo com ele e tivéssemos tentado convencê-lo a ir ao médico?
E se, em vez de o mandar embora para casa com medicação que não tinham a garantia de estar capaz de tomar, a Sanfil o tivesse internado?
E se ele, o nosso querido Tó Zé, fosse menos teimoso?
Mas a “vida a sério” logo se impõe a estes devaneios da ficção.
Não há “história alternativa”.
Hoje, somos nós os mobilizadores e os organizadores desta celebração do Tó Zé, com a certeza de que se tivesse sido ele a fazê-lo viriam, apareceriam, “apareces?”, seguramente, “mais cinco duma assentada”.
Daqui a nada ergueremos os nossos copos em memória do Tó Zé e juraremos que ouvimos uma risada lá do fundo da mesa.
