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Homenagem a Ana Luísa Amaral

Ana Luísa Amaral quis "fazer outra vez das palavras armas de arremesso que não se limitem a pairar, suaves, mas perfurem as florestas da noite", como escreveu em 2012.

Já tanto foi dito, e muito melhor do que saberia fazê-lo, sobre a poesia de Ana Luísa Amaral, feita de entrega e maravilhamento com o quotidiano. Da sua capacidade de tornar “poetáveis” as pequenas coisas do nosso mundo profano, seja uma aranha ou uma centopeia, o peixe da refeição ou um cigarro, um pinheiro ou uma abelha, uma cebola ou uma esponja, a integridade das batatas por descascar ou a força de uma silenciosa sororidade num “café manhoso” em que uma tribo de homens devora ovos e bacon. A poesia de Ana Luísa Amaral, que será celebrada a partir deste fim de semana na Feira do Livro do Porto, numa justíssima homenagem, é habitada por inúmeras “epifanias do banal” (a fórmula é de Isabel Pires de Lima), por uma sensibilidade poética aos afetos, à intimidade e às possibilidades “de relação contida no que é distinto quando este se abre ao acolher da diferença”, nas palavras de Rosa Maria Martelo.

É também isto, provavelmente, um olhar feminista sobre o quotidiano e o mundo, fora das fronteiras artificiais entre o doméstico e o público. A esse olhar - ou através dele? - soma-se uma capacidade, porventura única entre nós, de revisitar de forma subversiva o cânone da poesia, desconstruindo-o, parodiando-o por vezes, nas suas formas e temas, iluminando contradições e injustiças do mundo, escrevendo de uma outra forma os nossos mitos coletivos e literários, lendo inversamente a ordem do poder e o que por vezes chamamos de “património da cultura ocidental”, nomeando povos esquecidos ou refugiados condenados a perecer no Mediterrâneo e uma Europa que “pouco fita, a não ser mortos”. Na expressão de Eduardo Prado Coelho, desconjuntando as frases do poema para fazer “metáforas da terra verdadeira”.

Não era apenas na poesia, todavia, esta aproximação ao mundo, ou o sofrimento com as humilhações e a dominação, o amor à liberdade do pensamento e das formas de amar, o entusiasmo com as possibilidades da palavra. A Ana Luísa foi professora da Faculdade de Letras, tocou muita gente e mudou percursos de vida. Foi tradutora incansável. Foi determinante para que houvesse estudos feministas e queer em Portugal, estudou durante anos, reeditou e deu a conhecer “As Novas Cartas Portuguesas” a gerações de leitores e leitoras. Foi divulgadora pública de poesia, como fazia há anos, com regularidade, na rádio. Animou inúmeros laboratórios de poesia e oficinas de escrita (na universidade, em bibliotecas, no espaço Mira, mais recentemente) em que procurava contagiar outros e outras, por vezes bem distantes do “mundo da literatura”, com a alegria da descoberta das palavras e da beleza das pequenas banalidades que elas, as palavras, podem transfigurar. Foi interveniente política e cidadã completa que quis “fazer outra vez das palavras armas de arremesso que não se limitem a pairar, suaves, mas perfurem as florestas da noite, como disse um outro poeta, em furor e indignação pelas indignidades do seu tempo”, como escreveu em 2012.

Nesse período da “paz que nos foi retirada” pela guerra social e económica da austeridade, Ana Luísa Amaral publicou inúmeros textos de opinião nos jornais, em que, como Emily Dickinson, fez uso da “palavra mais selvagem” - não. Foi um tempo de “dizer não, não, não!", de “buscar velhas palavras de ordem e fazê-las de novo”, de se indignar contra o "banco bom” e o “banco mau”, de falar da “destruição das vidas de pessoas de carne e osso”, dos imigrantes cá chegados e dos convites à emigração.

Se a Ana Luísa Amaral dedicou grande parte da sua vida à poesia, dedicou também a sua poesia à vida. A uma vida para ser vivida devagar, resistindo à aceleração do tempo e à elevação da razão instrumental e do cálculo mercantil como medidas da nossa existência comum. Por isso, essa poesia à escuta do mundo era tão capaz de um “gesto em direção ao outro”, não apenas poético. Ana Luísa foi madrinha da Marcha do Orgulho LGBTQ do Porto, em 2008 (era ainda a terceira marcha, e éramos ainda poucas centenas a dar a cara nas ruas) e, em 2009, na condição de mandatária da candidatura de João Teixeira Lopes à Câmara do Porto, trouxe Gisberta para a abertura da campanha, como “símbolo daqueles que a cidade não quer ver”, numa intervenção marcante em que defendeu a aliança da poesia e da política, "espaço do possível e da utopia", do poder criador da imaginação. Em 2013 falou, de megafone na mão, à multidão que ocupava os Aliados na manifestação do “Que se Lixe a Troika”. Um dia depois, no início daquele mês de março, ao lado de Jorge Leite e de Carvalho da Silva, entre outros, encerrou o encontro “O país avalia a Troika”, organizado pelo Congresso Democrático das Alternativas, virando do avesso a lógica da intervenção externa e desvelando esse inverso do “ajustamento” que era o extraordinário sofrimento social infligido às pessoas. Foi também nesse ano que, com a Ana Luísa e tantas pessoas resistentes, quisemos “virar o Porto ao contrário”.

E cometemos uma campanha, feita com as nossas próprias mãos, em coletivo, sobre um “Porto que tem vários Portos” - nas palavras da Ana Luísa, que encabeçava a lista à Assembleia - “como um bolso que não é composto só pela sua parte visível, mas é formado igualmente pelo seu avesso”. Para nós, virar o Porto ao contrário era “ver e ouvir no avesso das coisas”. Para financiar a campanha fizemos, entre outras coisas, um pequeno livro, cujos inúmeros textos e desenhos foram recolhidos, em grande medida, pela Regina Guimarães e pela Ana Luísa Amaral. E a Ana Luísa foi eleita.

A sua passagem pela Assembleia foi interrompida pelas crescentes solicitações internacionais e, creio eu, por um certo cansaço com a lógica burocrática, um certo desencanto com a desafeição pela diversidade no debate entre as forças políticas, pelo esvaziamento a que as Assembleias estão sujeitas. Mas essa experiência não esmoreceu o compromisso da Ana Luísa Amaral. No verão de 2015 fez o encerramento do fórum Socialismo, no Porto, alertando para a situação dos refugiados e da Europa - "sem muros, o coração". Vibrou com os acordos à esquerda no final desse ano. Participou com entusiasmo na candidatura da Marisa em 2016. Indignou-se com Trump e Bolsonaro. Tomou posição, em 2021, dando voz ao “Manifesto por uma maioria plural de esquerda”, para que das eleições de 2022 saísse “a mesma pluralidade que impediu o aprofundamento do retrocesso social que a troika e o governo de direita quiseram impor.”

Às sessões, comícios, movimentos e assembleias políticas, a Ana Luísa trazia sempre a sua forma própria de os habitar e, frequentemente, improváveis convidados: Emily Dickinson, Adrienne Rich, William Blake, Sophia, as Três Marias. Trazia o cuidado da palavra e com ele expandia o nosso mundo sensível. Nunca panfletária, nunca sectária, que não era o seu jeito, mas encontrando e fazendo-nos descobrir outros modos de dizer as nossas indignações e revoltas, outras palavras para dizer os nossos desejos de justiça e de mudança. Talvez um dia alguém possa recolher e publicar esses preciosos escritos, que revelam também a indivisibilidade da ética e da estética na palavra da Ana Luísa, em todos os seus registos.

No período em que vivemos intensamente a intervenção política na cidade, foi ainda a promotora e a primeira subscritora de uma petição, endereçada aos órgãos autárquicos, pelo “uso público, aberto e alargado das Bibliotecas do Porto”, na qual, com outros e outras como Regina Guimarães, Alexandre Alves Costa, Alexandre Quintanilha, Ada Pereira da Silva ou Richard Zimler, pretendia que as bibliotecas públicas funcionassem com horário alargado, até às oito da noite e ao domingo, para que mais pessoas, nomeadamente quem trabalha, pudessem ali aceder à leitura, à internet, descobrir outros livros e outros cúmplices. Se a poesia é o espaço da “mais pura possibilidade”, como defendia, se a leitura constrói e desconstrói mundos, a luta por um acesso mais amplo às bibliotecas é também por uma cidade que expanda os possíveis de cada um e de cada uma. Essa pequena decisão, que ainda não foi tomada, poderia, quem sabe, fazer diferença na vida de alguém. E essa seria, porventura, mais uma bela homenagem que o Porto podia fazer à Ana Luísa Amaral.

Artigo de José Soeiro, publicado no jornal “Expresso” a 23 de agosto a 2022

 

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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