A história do Zé Pedro confunde-se com a nossa. Transcende-nos em muito. Tinha 14 anos quando ouvi "Contentores" pela primeira vez num programa de televisão e - impulso confundia-se tanto com deslumbramento - foi uma questão de dias contados com ansiedade até comprar o álbum. Aquelas canções foram responsáveis para que, um par de meses depois, os anteriores e angulares "Cerco" e "78/82" fossem os vinis mais riscados pelo uso da agulha do meu gira-discos.
Pelos anos, passamos a ser um dos deles, a ver e entoar a plenos pulmões o manual de (in)"Submissão" do Zé, a antecipar os passos no palco em direcção ao microfone que antecediam o muito esperado "Falhas" do Kalú, a poesia do "Conta-me histórias" do Tim, os fios de novelo rendilhados em desalento do "Circo de feras" do Gui ou o toque de deuses nos momentos solitários em que o Cabeleira fazia qualquer música dele. Éramos todos uma multidão, "Barcos gregos" adentro, a ir para longe, para muito longe, fazendo-nos ao mar num dia negro. A redenção existia na sensação de alcateia, hora do lobo, clareza feita magia em qualquer noite de concerto. E foram tantas. Dessas noites, rezavam os heróis. Eram feitos de suor, sorrisos e lágrimas. Acabávamos todos amarrados por abraços em forma de X. E o Zé Pedro iluminava-se sempre em palco com o mais bonito sorriso insubmisso que conheci.
Invadem-me muitos palcos com o Zé Pedro, noites no Johnny Guitar, o "Heroes" no Coliseu, o quase "The End" dos The Doors em promessa. As conversas entre amigos rondavam o inevitável. Já não se esperavam milagres mas o Zé dizia sempre que a luta continuava e nós acreditávamos com ele. A palavra bondade tem sido somada múltiplas vezes para o descrever. Todos estes dias me revejo à frente da aparelhagem da sala da minha adolescência, a gravar numa k7 o momento em a maquete dos Blind Zero passou pela primeira vez numa rádio nacional. Pelas suas mãos, na Antena 3. Não me esqueço das palavras. Do afecto e da humildade que tinha para dar e oferecer. Da curiosidade, da alegria. Viveu a várias velocidades, retirou prazer de cada uma delas, nunca se deixou magoar pelos outros. Sempre o sacana do sorriso e o abraço-todo-ele-abraço que marcava cada encontro. Era o maior dos heróis. Resistiu como um exemplo que nunca quis ser e deixa-nos como um ícone.
Entre todos. O meu amigo Filipe é o maior fã dos Xutos que conheço. Fazia das letras algumas das suas citações de vida. A estupefacção na nossa cara pela forma como o Zé e o Cabeleira tocavam "Prisão em si" no concerto na discoteca "Koolcat" em Matosinhos, viva, como se fosse hoje. Enviou-me esta SMS, fará amanhã sete dias: "Uma enorme tristeza. Conheci-o quando estávamos no Hard Club e no final me levaste aos camarins. Íamos a chegar e ele apareceu. Apresentaste-me e, inesperadamente, deu-me um abraço gigante. Fiquei sem reacção. Nunca me esquecerei disso". Ninguém esquece aqueles abraços. Obrigado por tudo, Zé.
Artigo publicado no Jornal de Notícias, 6 de dezembro de 2017.
