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A hipocrisia do mainstream

A reflexão sobre os boicotes não se prende em boicotar marcas individualmente, mas o sistema capitalista como um todo. Caso contrário, apenas estaremos a empurrar com a barriga os problemas sem nunca encontrar uma solução eficaz e duradoura.

Agora que as turbulentas águas da polémica instaurada pela vetusta opinião do fundador da Prozis acalmaram, penso que é tempo de fazer uma reflexão sobre as reações calorosas dos defensores das causas do Instagram.

As reações que se seguiram às afirmações do milionário dos suplementos foram tanto legítimas como imponderadas. A demandada de publicações de influenciadoras e influenciadores que se queriam desvincular da marca demonstra que a pressão mediática que os movimentos sociais provocam obrigam a tomadas de posição das mais diversas figuras públicas. Isto, porém, leva-nos às reflexões a quente e imponderadas, que não nos permitem refletir sobre a hipocrisia que paira sobre a sociedade digital. Para entender essa hipocrisia basta-nos pensar quem é o Miguel Milhão. Antes da polémica, o fundador da Prozis já era um excêntrico milionário, dos mais asquerosos comparsas do grande capital, amigo íntimo de Marco Galinha, um esbanjador profissional do lucro produzido pelos trabalhadores. A arrogância que o mesmo manteve após o cancelamento em praça pública, demonstra que, realmente, todos os boicotes que possamos articular são insignificantes no reino dos intocáveis. A reflexão deste assunto e de outros semelhantes, todavia, merece uma análise mais profunda. As ligações dos acumuladores ao conservadorismo são antigas e a história demonstra-nos isso. Quando este tipo de casos explode, nas redes sociais, estes espaços são inundados de progressistas. Progressistas prontos a boicotar as marcas que, no momento, irão oferecer maior retorno mediático, mas no resto do seu quotidiano vão continuar a ser cúmplices do sistema económico que provoca as mais diversas desigualdades e explora todos os nossos recursos.

Se vamos cancelar a Prozis, cancelemos também a Nike ou a Adidas, deixemos de comprar as roupas da Primark ou da Lefties, tudo marcas multimilionárias que sustentam as bases sólidas da sua acumulação na força de trabalho escravo infantil dos países do sudeste asiático. Mais, se esta exploração ultrapassar as fronteiras da nossa empatia, típica dos povos ocidentais, cogitemo-nos sobre a origem dos lucros milionários da Sonae, da Jerónimo Martins ou da Galp. Esses lucros são o resultado da expropriação diária que é feita aos trabalhadores e às trabalhadoras precárias dessas empresas e nós continuamos a opulentar os seus cofres, indiferentes ao desfalque lícito promovido pelos patrões. Continuamos a fazê-lo, muito porque os nossos salários não nos permitem arriscar noutras opções mais dispendiosas, é verdade. No entanto, continuamos a votar em quem defende os direitos dos mais fortes e patrocinar a expropriação diária do lucro produzido pela força do trabalho. Permanecemos divididos e a alimentar o bolo dos mais ricos.

Escrevo sem qualquer tipo de superioridade moral em relação às formas de consumo que praticamos, até porque, dentro de uma sociedade capitalista, essas formas de consumo nos são impingidas. Contudo, apelo a uma empatia mais abrangente, que nos desapegue das amarras do individualismo e que não nos permita cair nos devaneios do progressismo burguês e nas suas conquistas ilusórias. Os boicotes que tendemos a fazer a marcas que, em determinado momento, vão contra os nossos valores são irrelevantes. Irrelevantes no sentido direto de que pode nem afetar a marca, mas afeta os seus trabalhadores, e no sentido prático, pois a marca que a irá substituir pode nem ser abertamente antiaborto, por exemplo, mas será igualmente antifeminista.

A hipocrisia do mainstream é exigir, através da pressão mediática, a uma trabalhadora que deixe de comprar o produto mais barato de determinada marca porque a mesma é antifeminista. É lhe imposto que procure uma outra solução, como se a mulher trabalhadora já não sofresse na pele a dureza do abuso e da exploração laboral machista no quotidiano.

Por fim, a reflexão sobre os boicotes não se prende em boicotar marcas individualmente, mas o sistema capitalista como um todo. Caso contrário, apenas estaremos a empurrar com a barriga os problemas sem nunca encontrar uma solução eficaz e duradoura.

Sobre o/a autor(a)

Geógrafo e deputado municipal do Bloco de Esquerda em Santo Tirso
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