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A hierarquia dos tolos

A falsa ideia de que só se sujeita à praxe aquele que a admite, assenta no mesmo raciocínio que faz depender a punição para o crime do testemunho da vítima de violência.

A carta aberta dirigida a todas as instituições do Ensino Superior em que são exigidas alternativas de integração para a praxe académica pode ter, desde já, uma consequência imediata: acabar com os movimentos anti-praxe. Está em causa a liberdade da primeira hora, aquela que se verga à assinatura-marca da submissão nas primeiras filas para formulários e inscrições, tantas vezes aquela que gera o maior dos confrontos internos nos alunos e a patética divisão entre bons e maus dentro do mesmo espaço de ensino num momento de transição da vida. Os maus exemplos são infelizmente os mais notórios mas há quem praxe e quase não se note.

Para quem praxa sem submissão ou sem uso de grau hierárquico bojeço, a proposta de cidadania da carta aberta supra-partidária só pode ser bem recebida. Caso as universidades, politécnicos, faculdades e escolas superiores reconheçam que a assinatura de qualquer espaço de ensino tem que ter implícita a palavra liberdade, os movimentos anti-praxe perdem a sua razão de existir, deixando para a justiça o que nenhum movimento "anti" pode fazer: punir culpados. Mesmo os que fazem da sua capa e batina um esconderijo para as frustrações e falta de regulação da sua ordem interna ou alcoolemia aplicada aos outros. Essa realidade existe e faz-se notar.

A arte da contemplação crítica não é propriamente uma característica primordial da mudança. No movimento de passagem do Ensino Secundário para o Ensino Superior não se espera dos alunos que interpretem todos os sinais de contexto inicial à luz de um fim de curso. E sim, a intimidação, agressividade, coacção e, por vezes, simples teimosia de impertinentes, existe. A falsa ideia de que só se sujeita à praxe aquele que a admite, assenta no mesmo raciocínio que faz depender a punição para o crime do testemunho da vítima de violência. É importante que haja um contacto claro, funcional e com capacidade de resposta para queixas dos abusos na praxe. Mas exigir autodeterminação à vítima só adensa a perfídia e a violência. Não há liberdade sem pensamento mas pode haver crime sem palavra.

Se um nabo é um nabo, um novo aluno não é necessariamente um caloiro. Pode ser, querendo. E querendo, não tem que estar à mão dos abusos encobertos pela hierarquia dos tolos. Parece claro mas não tem sido. Os gostos não se discutem, dizem (-se). Mas sem alternativas de integração concretas e duradouras, a necessidade de pertencer a um grupo mistura-se com a ansiedade por, dentro dele, se sentir definhar a vontade. Não há ensino que possa conviver com a aprendizagem empírica de que a antiguidade não é experiência acumulada mas sim um posto servil.

Artigo publicado em “Jornal de Notícias” a 6 de julho de 2016

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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