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Há mais vida (e direitos) para além da ética da Ordem dos Médicos
Germano de Sousa, antigo bastonário da Ordem dos Médicos, escreve, na última edição do Expresso, sobre eutanásia. Defende duas teses: sem referendo não pode haver eutanásia e a ética profissional proíbe os médicos de a praticarem. Da combinação destas duas parece resultar uma terceira: eutanásia sim, desde que haja referendo e não seja um médico a praticá-la. A ideia não surge de forma explícita no texto e percebe-se porquê: Germano de Sousa confia tanto no referendo ou na ética – ou nas duas - para impedir a eutanásia, que se dispensa de nos dizer o que pensa sobre essa possibilidade. Mas, quem melhor que um médico para ajudar o doente nessa hora tão dramática?
Para Germano de Sousa, o Parlamento não tem legitimidade para aprovar a despenalização por duas razões: é “uma minoria a impôr a todos as suas próprias opções e decisões de vida” e pelo facto de a “eutanásia não constar do programa de nenhum dos partidos desses deputados”. Nenhuma das afirmações faz sentido e a segunda é falsa. No contexto da nossa democracia constitucional os direitos individuais estão consagrados na lei e não foram referendados. É assim que deve ser, os direitos não podem ficar reféns de referendos, essa é a estratégia de quem não os quer ver reconhecidos. Acresce que a aprovação de uma lei não exige aos partidos a sua prévia consagração programática, se o exigisse o Parlamento e o país há muito que estariam paralisados.
Ao contrário do que diz Germano de Sousa, aprovar a despenalização não se traduz numa imposição: a lei não vai impor nada ou obrigar seja quem for, a lei vai permitir o recurso à eutanásia a quem o quiser, desde que cumpra os requisitos exigidos. Manter a actual penalização é que constitui uma imposição porque proíbe o recurso à morte assistida a quem o pretenda.
A despenalização é uma opção individual que deve ser consagrada na lei. Mas para Germano de Sousa outros valores mais altos se levantam. Leio com espanto: a ética e a deontologia médicas “para mim sobrelevam qualquer lei ou religião”. O ex-bastonário imagina uma sociedade conduzida pelos princípios do juramento de Hipócrates (século V a.C.) e pela ética da sua Ordem. Não duvido que os próprios médicos reconhecem que não pode ser assim.
Os médicos respeitam o direito dos doentes à autodeterminação que lhes permite aceitar ou recusar o que lhes é proposto. Por maioria de razão, dignidade e padrões de vida são definições e escolhas do doente que o médico está obrigado a respeitar, sem pretender impor as suas. Se assim não for, “o princípio ético de tudo fazer pelo bem estar e dignidade do seu doente”, defendido por Germano de Sousa, esvazia-se de conteúdo.
A relação médico-doente consolida-se tanto no respeito pelo direito do médico à objeção de consciência como no respeito pela autodeterminação do doente. O médico não pode ser obrigado a praticar eutanásia e o doente não pode ser impedido de a ela recorrer. A ética médica não pode esmagar os direitos de personalidade do doente, são eles que permitem afirmar e preservar a sua dignidade.
A eutanásia não é uma obrigação, a sua despenalização é um direito que alarga as escolhas de cada um perante o sofrimento, a agonia, a dependência, a degradação. Mais direitos, mais democracia. É disso que se trata.
Texto publicado pelo Semanário Expresso, na edição de sábado 11 de fevereiro de 2017.
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