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Há combustível para a greve?

Poder-se-á discutir a proporcionalidade e a oportunidade da greve mas quando vemos o governo coligar-se objectivamente com os interesses da contraparte, decretar serviços mínimos tão máximos que põem em causa a essência da greve, percebe-se que só o curto prazo é a preocupação.

O direito constitucional à greve não é uma arma que dispare necessariamente para o bolso dos patrões a fim de lhes sacar uns quantos trocos dos seus lucros anuais a título de salário ou remuneração. Ou seja, nem sempre a greve pode dirigir-se directamente à contraparte. Greves há, pela sua sensibilidade, que mexem com tudo o que põe um país a mexer. A anunciada greve dos motoristas de matérias perigosas é um desses casos e não é por ser capaz de, a prazo, paralisar o país que não devemos olhar para os serviços mínimos decretados pelo Governo socialista como um ataque aos fundamentos da democracia e liberdade que o Partido Socialista reclama.

Sejamos claros e não inflamáveis. As eleições de Outubro são a única razão pela qual o Governo trata esta greve diferentemente da greve de Abril passado. Não estivéssemos em pleno Verão fosco a dois meses das eleições, tudo seria igual. Mas o contraponto serve-se a tentativa de fogo posto: como pode a oposição à Direita reclamar do que criticou em Abril, dizendo outra coisa ao sabor das conveniências de quem vai a votos sentindo que o caminho está em brasas? Se PSD e CDS criticaram António Costa por há quatro meses ter permitido que o país quase parasse por falta de uma atitude preventiva face à greve, não podem ser eles, agora, a elevar o andor que transporta o nada virgem Pardal Henriques. PSD e CDS devem resistir à tentação de, face ao clima ameno deste Verão, inflamar esta greve como se de um conveniente incêndio florestal se tratasse. Já nos bastou o aproveitamento político e tanta demagogia sem luto nem vergonha nos verões dos mais recentes anos.

Poder-se-á discutir a proporcionalidade e a oportunidade da greve. Estando a decorrer negociações entre sindicatos e a Antram, é difícil sustentar a justeza da paralisação dos motoristas junto da opinião pública sem que tudo pareça ser um exercício de oportunismo, uma amostra de influência para instaurar o caos ou uma porta giratória para posicionar alguns protagonistas para outros voos. Pardal Henriques é anunciado como candidato do PDR pelo círculo de Lisboa. Perante o contexto, não basta a Pardal Henriques demarcar-se do apoio do movimento dos Coletes Amarelos à greve do dia 12. Tão legítima como aparentemente desnecessária, a esta greve falta o combustível da legitimidade ou respaldo moral que a possa fazer vencedora a longo prazo. Mas quando vemos um Governo socialista a usurpar pensamento à lógica, coligando-se objectivamente com os interesses da contraparte, decretando serviços mínimos tão máximos que põem em causa a própria essência da greve, percebe-se que só o curto prazo é a preocupação de todos.

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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