Guerra regional com risco mundial!

porJosé Maria Cardoso

22 de maio 2022 - 14:27
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Exige-se à ONU o empenho na realização de uma Conferência de Paz que trave a agressão russa e restabeleça duradouramente a integridade da Ucrânia. A guerra tem de ser travada antes que o conflito fronteiriço regional tome dimensão de risco mundial.

Passados quase três meses de guerra, com perdas de milhares de vidas (militares e, em grande número, indefesos civis), exterminação de centenas de povoações, destruição de interminável edificado urbano (em muitos casos de grande valor patrimonial e civilizacional), multiplicação de calamitosos ataques bélicos gerando a maior crise humanitária do pós-guerra mundial, desencadeado um estado de comoção mundial com a barbárie do sec. XXI servida pela concorrência televisiva na disputa da notícia ou da imagem mais chocante, impõe-se perguntar, mesmo que em modo aparentemente ingénuo mas na realidade pertinente: a quem serve esta guerra?

Na verdade, não existe qualquer justificação, ou sequer atenuante, que possa desculpabilizar esta invasão imperialista da Rússia sobre um Estado soberano. Mesmo não sendo algo que não estivesse no horizonte das afrontas da política de expansionismo czarista e internamente repressiva perpetrada por Putin, não era expectável tanto massacre, tanta brutalidade, tanta crueldade. Esta guerra não serve o povo russo. Quantos soldados mortos, quantos milhões de rublos gastos, quantas necessidades básicas adiadas? Esta guerra serve para a afirmação pessoal de dominância interna e para a afronta externa com demonstração do poderio militar. É a tirania de um poder sedento da restituição do império, assente num regime de oligarquia por onde grassam economias mafiosas que sustentam a governação.

E do outro lado, quem temos? Um povo em doloroso sofrimento, em agonia permanente, que se vê confrontado entre o incerto refúgio pelo abandono - deixando entes queridos para trás, ou o certo desespero pela aflitiva permanência – sobrevivendo ao lado dos que vão perecendo. Que opção dramática, que escolha desesperante. Esta guerra não é deles, nem a querem por motivo algum. Este povo merece-nos todo o apoio, todo o contributo solidário, todo o risco do resgate.

Já não é tão efusiva a minha solidariedade para quem governa e dirige a Ucrânia. Não vejo propriamente heróis, mas muito mais guerreiros patriotas de iguais métodos carnificinas quanto os do agressor. Dir-se-á que é a guerra e têm o direito a defenderem-se. Com certeza, mas não exatamente com a tática do extermínio e das atrocidades que tanto contestam. O apelo do presidente é sempre o mesmo. Enviem-nos armas, das mais potentes e demolidoras que tiverem, para que possamos alimentar a guerra. O espírito imperialista da NATO nem precisava de ouvir tanto. Assim, entram no conflito com o manto protetor do apelo de socorro. Que benfeitores, até se fazem passar por uma organização de cariz humanista! A NATO é uma aliança militar intergovernamental de defesa do mundo “ocidental” com vocação belicista e guerreira no objetivo de conter o antagonismo soviético (Pacto de Varsóvia) no período da guerra-fria. Estas pretensões mantiveram-se, mesmo depois da queda do muro de Berlim e da fragmentação da URSS, com propensão planetária numa visão de domínio unipolar protagonizada pelos EUA.

Na senda dos seus propósitos armamentistas, têm agora a despudorada missão de responder à guerra com escalada da guerra, e para isso até persuadem países vizinhos do conflito (Suécia e Finlândia) a encetar processos de adesão. Que momento adequado para desmantelar a neutralidade, que tiro certeiro na provocação bélica!

Pelo respeito ao direito internacional e em representação da autodeterminação dos povos, contra a brutalidade dos impérios e o massacre de populações indefesas, a ONU tem que interferir em nome da paz, razão base da sua existência. Mesmo presa aos seus ditames fundacionais no modelo de funcionamento do Conselho de Segurança, a ONU não pode limitar a intervenção a apelos de circunstância ou à simples reivindicação de abertura de corredores humanitários. Exige-se o empenho na realização de uma Conferência de Paz que trave a agressão russa e restabeleça duradouramente a integridade da Ucrânia. A guerra tem de ser travada antes que o conflito fronteiriço regional tome dimensão de risco mundial.

Artigo publicado no “Jornal de Barcelos” - maio de 2022

José Maria Cardoso
Sobre o/a autor(a)

José Maria Cardoso

Professor. Dirigente do Bloco de Esquerda
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