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A guerra que se segue

O balão nos céus de Montana é ar rarefeito e tóxico para qualquer perspectiva de esvaziamento pós-tensão. Quando as potências confirmam que a espionagem do inimigo ganhou aos pontos no tabuleiro do jogo, já não há nada que não se faça às claras.

Como as diabruras dos mais pequenos, fintas bem feitas ao mundo dos adultos que ultrapassam pela direita, travessos e sem pedir licença, os serviços de espionagem são a face invisível da diplomacia, despida de formalismos e de cimeiras. São os brinquedos a sério, "armas-voyeur" para quem gosta de espreitar pelo buraco da fechadura. A espionagem bem-sucedida é inventiva e eleva-se a arte do drible quando surte efeito e ludibria os canais oficiais. Acredito que provoque excitação em quem a imagina e executa, assim como um misto de temor e admiração nas vítimas. Como se a sacanagem fosse uma manobra bandida ao serviço do Estado.

O balão supostamente meteorológico abatido por um míssil disparado de um F-22 é um episódio teste de resistência para um conflito pré-anunciado a dois anos entre as duas maiores potências mundiais, servida em Taiwan como toalha de mesa estratégica. A tensão no Sul dos mares da China, onde a disputa territorial cresce com as Filipinas, Brunei, Vietname e Malásia, é percepcionada pelos chineses como uma antecâmara de guerra com os EUA, que acabaram de aumentar a presença militar nas Filipinas (de cinco para oito bases militares) e no arquipélago de Pulawan. Com o Japão em equação para o reforço militar norte-americano que possa atingir Pequim, é difícil conceber que a China continue a olhar para o balão.

A reacção beligerante norte-americana, premonitória, colocou Biden perante uma encruzilhada que o passado do seu antecessor se encarregou de resolver. Os "X Files" do Pentágono dão conta de que pelo menos três outros balões chineses foram sinalizados na Administração Trump, encarados como objectos voadores não identificados e tratados como tal. Mas, para Pequim, a dimensão estratégica nada tem de extraterrestre. Daí a ter lançado, há vários anos, uma frota de balões de espionagem para 40 países dos cinco continentes vai um voo de gigante, escondido num golpe de asa.

No momento em que Antony Blinken, o líder da diplomacia dos EUA, se preparava para rumar à China, diminuindo a voltagem que recrudesceu desde a visita de Nancy Pelosi a Taiwan, eis um avistamento. O balão nos céus de Montana, sobrevoando um arsenal de mísseis balísticos intercontinentais, é ar rarefeito e tóxico para qualquer perspectiva de esvaziamento pós-tensão. Quando as potências confirmam que a espionagem do inimigo ganhou aos pontos no tabuleiro do jogo, já não há nada que não se faça às claras. A contraespionagem transforma-se numa figura de estilo. A China continua a ter o papel "pivot" para fazer a paz na guerra que vivemos e eclodir a guerra que se segue.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 10 de fevereiro de 2023

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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