Longe vão os dias em que o desarmamento e a não-proliferação e a paz global eram matéria de consenso e objetivos partilhados. Não o eram apenas no discurso dos líderes mundiais; eram-no também nas prioridades estratégicas, na diplomacia, e nos fundos destinados à cooperação para o desenvolvimento. Esses tempos parecem ter chegado ao fim.
A questão da prevenção de conflitos e da construção da paz é antiga, mas ganha maior relevância após a Segunda Guerra Mundial, desde logo, com a criação da Organização das Nações Unidas em 1945. Embora a Guerra Fria tenha abrandado as expectativas em relação à recém criada ONU e às limitações do Conselho de Segurança, nos anos 1990, a questão da paz ressurge com força.
Em 1991, extingue-se o Pacto de Varsóvia. Em 1992, o Secretário-Geral das Nações Unidas apresenta a Agenda para a Paz, que não só mapeia as obrigações da ONU na manutenção da paz mundial, como também coloca maior ênfase na prevenção de conflitos. Em 1998, dá-se mais um avanço significativo com o Estatuto de Roma, que estabelece os crimes de genocídio, crimes de lesa humanidade, crimes de guerra e o crime de agressão, tornando-se o instrumento constitutivo do Tribunal Penal Internacional.
O Tratado de Não Proliferação, em vigor desde 1968, é complementado, em 1996, pelo Tratado de Interdição Completa de Ensaios Nucleares e, em 2017, pelo Tratado sobre a Proibição de Armas Nucleares. Durante as décadas de 1990 e 2000, diversos acordos de paz puseram fim a conflitos armados internos, muitos dos quais eram herança da Guerra Fria e representavam riscos para a paz e estabilidade mundiais.
Mas as falhas, limitações e padrões duplos da paz liberal, sustentada numa economia de mercado, são evidentes. Por um lado, não se conseguiu ir além de uma paz negativa, ou seja, mínima, focada essencialmente na prevenção da agressão e da violência. Por outro, não se construiu um paradigma de paz positiva, sustentável ao longo do tempo, e assente em valores como a igualdade, a justiça, o bem-estar social, a autodeterminação dos povos e a descolonização. Ainda assim, hoje, é essa arquitetura frágil que vai resistindo às tentativas de normalizar o inaceitável, de tornar a guerra no “novo normal”, e a paz em qualquer coisa de indesejável.
Um dos indicadores disso é a manutenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). A NATO, concebida como um sistema de defesa coletiva, usou e abusou do conceito de autodefesa e da figura da ação preventiva para justificar intervenções ilegais pelo mundo fora, consolidando a hegemonia dos EUA no período pós-bipolar. Entre os exemplos mais emblemáticos estão a invasão do Afeganistão em 2001 e da Líbia em 2011, onde o carácter de defesa colectiva é difícil (ou impossível) de identificar, enquanto o carácter ofensivo é sobremaneira evidente. O 11 de setembro e a subsequente luta contra o terrorismo serviram para legitimar muitas destas ações e para deteriorar o respeito pelo direito internacional, com efeitos que se fazem sentir até hoje.
O segundo, até agora menos evidente, residia no potencial belicista da União Europeia. A 22 de março de 2021, foi criado o Mecanismo Europeu de Apoio à Paz (MEAP), em teoria destinado a prevenir conflitos, construir e preservar a paz, e reforçar a segurança e a estabilidade internacionais. Inicialmente dotado de um orçamento de 5 mil milhões de euros, que agora mais do que triplicou, o MEAP fez soar os alarmes das organizações não-governamentais internacionais, que temeram que este significasse um ponto de viragem rumo a uma abordagem mais belicista da gestão dos conflitos. Conforme denunciado por estas ONGI, o MEAP, ao fornecer equipamento militar, armas letais e treino a forças armadas em zonas de conflito, arriscava agravar as violações dos direitos humanos, intensificar a violência e fomentar a proliferação de armas, em vez de proteger os civis e incentivar soluções políticas. No Sahel, paga-se agora a fatura dessas escolhas.
A invasão da Ucrânia trouxe às elites da União Europeia a oportunidade e a justificação há muito desejadas para construir um consenso bélico na Europa, provando que o projeto europeu nunca foi verdadeiramente sobre a ideia de paz e que, nos dias de hoje, tampouco se limita à mera necessidade de “defesa”. Desde então, formou-se uma tempestade perfeita.
Em março de 2022, o Conselho adotou a Bússula Estratégica para a segurança e defesa na Europa e chegou a acordo para que os estados-membros investissem 2% do PIB em despesas militares. Dois anos mais tarde, em março de 2024, foi apresentada a primeira Estratégia Industrial de Defesa Europeia que “define uma visão clara e de longo prazo para alcançar a prontidão a nível industrial no domínio da defesa na União Europeia”.
Esta estratégia inclui uma nova iniciativa legislativa, o Regulamento do Programa Europeu da Indústria de Defesa, que procura consolidar as medidas de emergência adotadas em 2023, como o ASAP (instrumento de apoio financeiro às indústrias da defesa para o aumento da capacidade de produção) e o EDIRPA (para reforçar a cooperação entre os Estados-Membros na fase de contratação pública para a compra de armamento), avançando para medidas mais estruturais “a fim de alcançar a prontidão industrial no domínio da defesa.” No fundo, trata-se de preparar a transição da economia e do tecido industrial europeus para uma economia de guerra, com grandes benefícios para as empresas europeias do setor.
Segundo a Agência Europeia de Defesa, os Estados-Membros da UE já alcançaram gastos combinados de 279 mil milhões de euros em 2023, um aumento de 10% face ao ano anterior, e prevê-se que estes aumentem para 326 mil milhões de euros — o equivalente a 1,9% do produto interno bruto (PIB). Este aumento marcará o décimo ano consecutivo de crescimento na despesa com defesa por parte dos Estados-Membros.
Esta semana, o secretário-geral da NATO, Mark Rutte, foi ainda mais longe, sugerindo que, para atingir os 2% do PIB em despesa militar, em caso de escassez de verbas, os Estados-Membros cortem na saúde ou nas pensões de reforma. Para quem, como eu, cresceu sob a sombra das medidas da austeridade, estas declarações de Rutte não deixam de provocar um déjà vu, mas agora com cortes a serem feitos em nome da guerra. Estamos perante um processo de securitização em curso, em que, em detrimento da paz, da resolução negociada dos conflitos e da segurança humana, prevalece uma corrida ao armamento. Não há pão na mesa, mas há carne para canhão.
Sob a suposta ameaça da agressão militar ou da dependência energética russa, bem como a necessidade de superar a competitividade face à China, a UE tem ainda promovido o conceito de “autonomia estratégica” - conceito já usado para falar da indústria de defesa europeia pelo menos desde 2013. Sob a asa deste conceito, deve mencionar-se ainda o Global Gateway, iniciativa lançada em 2021 pela Comissão de Ursula von der Leyen, com o objetivo de fazer face à Belt and Road Initiative da China, lançada já em 2013. Apesar de uma retórica assente nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável e na transição verde, o Global Gateway tem vindo a reforçar dinâmicas neocoloniais e a impor condicionalidades, desviando recursos destinados à construção da paz, à promoção dos direitos humanos e ao combate à pobreza para o controlo anti-imigração - custe o que custar - e para grandes projetos de infraestrutura, ligado à matérias-primas críticas e, claro, à indústria da guerra.
É possível que a ideia de paz nunca tenha sido tão impopular. Se o institucionalismo liberal não conseguiu garantir a paz e a estabilidade mundiais, a atual deriva para um consenso bélico seguramente agravará essas falhas, com consequências humanas e ambientais irreversíveis. As elites europeias e ocidentais estão dispostas a lucrar com o medo, a transformar a guerra num modelo de negócio, no qual os nossos direitos humanos e legítimas aspirações são a moeda de troca. Para deter a barbárie, é urgente procurar soluções negociadas e reavivar o espírito de uma paz positiva, que, embora nunca se tenha cumprido verdadeiramente, continua a ser possível de alcançar. A guerra é a guerra, e deve ser tratada como tal - com a consciência das suas consequências devastadoras e irreparáveis.
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