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As “greves” das primeiras páginas

Certas primeiras páginas também se permitem fazer “greve” a certos conteúdos ou, pelo menos, ao seu tratamento (mais) completo para ser (mais) isento e imparcial.

“Houve mais greves durante o Governo Costa do que com Passos”. Topo da primeira página de um “jornal de referência” (Público, 26/10/2018), em letras garrafais.

É um facto, não se põe em causa. Como se escreve, desenvolvendo essa chamada de primeira página, nas páginas interiores daquele jornal, “quer o ano passado, quer este ano, os pré-avisos de greve ultrapassaram qualquer um dos anos de Passos”.

Há explicações mais ou menos complexas, conforme as vertentes de análise (económica, social, sindical, política, etc) pelas quais não se vai aqui tentar enveredar.

Algo que interessa aqui sublinhar é que, na era da “comunicação” cada vez mais simplificada e simplificante (para não dizer simplista) do que “comunica”, esta destacadíssima chamada de primeira página é disso exemplo.

Com certeza que muita gente que mais não leu do que essa primeira página exposta em qualquer banca (ou na Internet), terá concluído poderem ser estas as razões racionais, objectivas, para tal discrepância quanto ao número de greves entre os dois Governos:

- Há menos paz social “durante o Governo Costa do que com Passos”;

- Há menos diálogo com os trabalhadores “durante o Governo Costa do que com Passos”;
- Há mais promessas não cumpridas “durante o Governo Costa do que com Passos”;

- Há piores condições de trabalho “durante o Governo Costa do que com Passos”;

Não visa, longe disso, este texto defender o “Governo Costa” relativamente ao Governo “com Passos” quanto a essa diferença no número de greves verificadas durante o mandato de um e do outro.

Aliás, como decorre do que se escreve mais adiante, se em algo há a dar atenção a este texto é ao que contém de crítica (também) ao “Governo Costa” no domínio laboral, no sentido de que, seis anos que foram passados, (ainda ) mantém, não reverteu, medidas tomadas pelo ex-“Governo Passos” que, logo então, de 2011 a do15, objectivamente, justificariam (dever) ter havido mais greves do que, agora, “durante o Governo Costa”.

Concretamente, para além das reduções de salários, corte de feriados e aumento da duração do trabalho na Administração Pública (já revertidos), o essencial das alterações ao Código do Trabalho então decididas “com Passos” (com negativo destaque para a Lei 23/2012, de 25 de Junho), que, ainda se mantendo no essencial. foram (são) especialmente nefastas para as condições de trabalho, para a qualidade do emprego.

De qualquer modo, se agora há greves, para além de não haver dúvidas de que são legítimas (já não digo o mesmo quanto a certas greves “atípicas”, em que há dúvidas de que sejam legítimas, por exemplo, as anunciadas greves dos juízes...), é porque alguma coisa está (continua) mal nas condições de trabalho e qualidade do emprego dos grevistas e, na sua opinião (se sustentada), poderia (deveria) ser corrigido.

Mas, voltando a reconhecer-se que há outras explicações mais objectivas a ter em conta, nesta diferenciação no número de greves que tão destacadamente noticiada é, julga-se serem de ponderar dois tipos de explicações que, ainda que mais subjectivas (mas com consequências muito objectivas), relacionadas entre si, (também) nos ajudam a perceber melhor por que é que “houve mais greves durante o Governo Costa do que com Passos.”:

O primeiro tipo de explicações é de há meia dúzia de anos:

-“ Não há alternativa ao caminho seguido” (Primeiro Ministro – PM - Pedro Passos Coelho, Outubro de 2011);
-“Queremos ir além da troika” (PM Pedro Passos Coelho, 9/5/2011);
- “Portugal só sai da crise empobrecendo” (PM Pedro Passos Coelho, Outubro de 2011);
- “Portugueses devem ser menos piegas” (PM Pedro Passos Coelho, Fevereiro de 2012);
- “Estar desempregado pode ser uma oportunidade” (PM Pedro Passos Coelho, 11/5/2012);
- “Muita gente supôs que se podia viver de forma contínua acima das suas possibilidades” (PM Pedro Passos Coelho, Novembro de 2012);
- “Não podemos viver acima das nossas possibilidades” (Presidente da República Aníbal Cavaco Silva, Maio de 2011).

O segundo tipo de explicação, que muito se relaciona com aquele primeiro tipo, é de há mais ou menos meio século:

”(...) A revolta não é uma reacção automática face à miséria e ao sofrimento enquanto tal; ninguém se revolta perante uma doença incurável ou um terramoto ou em face de condições sociais que lhe parecem impossíveis de modificar. É apenas no caso em que há boas razões para crerem que essas condições podem ser modificadas e o não são, que a revolta surge (...)” (Hanna Arendt, “Crises da República”, 1969).

Admite-se que possa haver quem considere uma “blasfémia” invocar esta citação de Hanna Arendt para algo tão infinitamente mais comezinho relativamente à relativa passividade (“banalização”) e até colaboração de muita gente perante atrocidades nazis da última guerra que esteve subjacente a isto (e não só ) que escreveu a grande filósofa e escritora.

Mas, ainda que com a devida relativização nesse aspecto, invocando-a, dessa citação se pode deduzir, quanto a estar a “haver mais greves durante o Governo Costa do que com Passos”, que:

- Com Passos”, em geral, os trabalhadores, tendo feito menos greves do que "durante o Governo Costa", conformaram-se mais, sendo de presumir que se convenceram (foram convencidos) de que lhes “era impossível modificar as condições sociais” que então tinham, mesmo sendo essas condições piores (ou, no mínimo, iguais) do que as que têm agora, "durante o Governo Costa";
- “Durante o Governo Costa”, os trabalhadores têm mais “razões para crer que as suas condições podem ser modificadas” do que "com Passos".

Então, é de concluir que, objectivamente, houve mais razões para haver greves “durante o Governo Passos do que com Costa”.

É pena que esta conclusão não tivesse, na primeira página (ou, minimamente, no interior, no desenvolvimento da notícia), também sido considerada pelo jornal acima referido.

Talvez não o tenha sido pelo facto de falta de espaço por ser demasiado grande o tamanho da letra da tal chamada de primeira página.

Ou, então, enfim, porque certas primeiras páginas (e não só) dos jornais, mesmo os “de referência”, por vezes, também se permitem fazer “greve” a certos conteúdos ou, pelo menos, ao seu tratamento (mais) completo para ser (mais) isento e imparcial.

Sobre o/a autor(a)

Inspector do trabalho aposentado. Escreve com a grafia anterior ao “Acordo Ortográfico”
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