Grande Irmão no supermercado

porEsther Vivas

04 de abril 2014 - 12:15
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Associamos a compra no supermercado a modernidade, autonomia, escolha livre, mas há poucos locais no mundo, dos que fazem parte da nossa vida quotidiana, tão controlados e monitorizados como estes estabelecimentos.

Por detrás das nossas compras, ainda que não pareça, há muito em jogo. Daí que nada no supermercado fique ao acaso. Tudo está pensado para que compremos, e quanto mais melhor.

Um laboratório chamado “super”

Chegamos ao “super” e uns cartazes, em geral de cores claras, dão-nos as boas-vindas convidando-nos a entrar, muitas vezes acompanhados de reclames de ofertas que anunciam preços muito baratos. Pegamos no carrinho de compras, tão grande que muito temos de encher para que não pareça vazio e começamos à procura do que precisamos por inúmeros corredores com prateleiras cheias de produtos. O carro por mais que o leves a direito desvia-se sempre para a estante e aí vês, como quem não quer a coisa, um novo artigo que não esperavas e junta-lo ao que levas.

Precisas de leite e de iogurtes e tens de atravessar todo o centro comercial para os alcançares. Porque porão sempre o que faz mais falta no fim do estabelecimento? De caminho, uma música de fundo com ritmo, nem a escutas mas ali está animando-te a comprar. Olhas para os preços e não entendes porque é que nunca os valores são redondos, terminam sempre com decimais, tornando muito difícil a comparação entre uns e outros. Fixas-te em todos aqueles que terminam em 9, e assim poupas um pouco. Ainda que, talvez, nem sequer haja grande diferença entre pagar um cêntimo a mais ou a menos. Mas, assim o produto parece mais barato.

Tens de parar, dois carros com pessoas a comprar estão no meio do caminho. E pergunto-me, porque é que fazem os corredores tão estreitos? Enfim. Aproveito para olhar para uma estante e para outra e ali está aquele saco de batatas fritas que não me convém a olhar-me de frente. Vá, não virá daqui... o carro. Avanço agora à procura do pacote de arroz de que preciso mas já o mudaram outra vez de lugar. Não percebo porque é que de x em x tempo mudam os produtos de sítio. Quando já sei o caminho de memória, tenho, de novo, de dar mil voltas antes de encontrar o que preciso. Sim, ao reaprender o caminho descubro novos produtos que não tinha visto antes.

Só me falta o detergente. Na área de drogaria e à altura dos olhos vejo aquela marca que dizem na televisão que deixa a roupa muito limpa. Pego no pacote e, por acaso, olho o preço... que caro! Devolvo o pacote. Olho de cima abaixo nas estantes e encontro ali outra marca menos conhecida mas mais barata. Agacho-me e agarro-a. Porque é que a põem sempre no local mais difícil de encontrar? Chega o momento de passar na caixa. Na fila e aborrecida pela espera vejo aqueles chocolates, caramelos, guloseimas... e só a um palmo. Impossível dizer “não”. Vá lá, um dia não são dias, ponho no carro.

Analisando o meu “trajeto”, interrogo-me sobre quantas coisas que comprei e não necessitava? Adquiri os produtos que me interessavam? Calcula-se que entre 25% e 55% da nossa compra é compulsiva, fruto de estímulos externos. Metemo-los no carro apesar de não nos fazerem falta. E ao passar junto a uma estante, em cerca de 20% dos casos compramos antes a marca que se encontra à altura dos nossos olhos do que outra qualquer, só por comodidade, ainda que as outras sejam mais baratas. Sem estarmos conscientes, somos cobaias num grande laboratório chamado “super”.

Sorri, estão a gravar-te

Os nossos movimentos num supermercado nunca passam despercebidos, uma câmara ou outra, colocada aqui ou ali, regista-nos. Mas, que fazem com essas imagens? Sabemos quando nos estão a gravar? Podemos aceder a essas imagens? O professor Andrew Clement da Universidade de Toronto e fundador do Instituto de Identidade, Privacidade e Segurança assinala que estamos indefesos perante estas práticas. Segundo um estudo realizado pela sua equipa no Canadá, nenhuma das câmaras colocadas nos maiores centros comerciais canadianos cumpria os requisitos de sinalização a que estão obrigados por lei. Aqui, na Europa, também existe polémica. Não temos nem ideia de quem, nem como nem quando, grava, nem o que fazem com as imagens.

A cadeia de supermercados Lidl protagonizou um dos maiores escândalos quando, em março de 2008, se descobriu que espiava sistematicamente os seus trabalhadores em várias lojas na Alemanha mediante mini-câmaras colocadas em locais estratégicos. Todas as segundas-feiras, segundo denunciou o semanário alemão “Stern”, uma equipa de detetives instalava entre cinco e dez câmaras a pedido da direção sob o pretexto de evitar roubos. No entanto, essas câmaras serviam para controlar os trabalhadores, gravar as suas conversas e elaborar detalhados perfis pessoais. Não se trata de um caso isolado. A sua concorrente Aldi foi acusada, em março de 2013, de espiar os seus empregados em vários supermercados da Alemanha e da Suíça mediante câmaras ocultas, segundo denunciou a revista alemã “Spiegel”.

Em Espanha, a Agência Espanhola de Proteção de Dados abriu um processo de sanção à Alcampo por espiar os seus trabalhadores. Em finais de 2007, a Alcampo instalou secretamente num hipermercado de Ferrol três câmaras ocultas em espaços reservados ao pessoal. Semanas depois, utilizou o conteúdo das gravações dessas câmaras para despedir um empregado e sancionar outros onze.

Nós, consumidores, também somos objeto de voyeurismo. O último caso, deu-se na cadeia de supermercados Tesco, em finais de 2013, na Grã-Bretanha. A empresa instalou pequenas câmaras em 450 bombas de gasolina com o objetivo de scanerizar o rosto dos seus clientes na fila do estabelecimento, afim de detetar a sua idade e sexo e oferecer-lhes publicidade mais de acordo com os seus perfis. O filme de ficção científica “Minority Report” de Steven Speilberg torna-se realidade, ainda que os anúncios personalizados a partir da leitura da retina, como acontecia no filme, parece não terem de esperar até 2054.

A nossa vida num cartão

“Tem o cartão cliente?”, já é um ritual que nos perguntam ao passarmos na caixa. E se não o tens, oferecem-nos um mar de vantagens, descontos e recompensas depois de o teres. Deste modo, corremos a preencher o formulário, apontando todos os nossos dados, mal lendo o que assinamos, para poder aceder quanto antes a tão fantásticas promoções. No entanto, que acontece com a informação que damos? Quem a usa? Para que fins? Isto é algo que não nos contam ao nos registarmos.

Os supermercados são os reis dos cartões de fidelização. Oferecem-nos presentes, descontos, pontos... se uma vez e outra e outra e outra passarmos pela sua caixa. Para além de contar com a nossa fidelidade, as empresas da grande distribuição procuram, mediante estes cartões cliente, conhecer tudo ou quase tudo da nossa vida privada: quem somos, que idade temos, estado civil, preferências, hobbies. À margem do que diz a ficha que preenchemos, as compras periódicas que realizamos ficam, a partir de então, registadas para sempre no nosso arquivo: se gostamos ou não do chocolate, se preferimos a carne ou o peixe, que café, massas, bebidas, conservas, verduras... tomamos. Sabem tudo.

As companhias armazenam estes dados e utilizam-nos via marketing para melhorar as suas vendas. Assim, conhecem quem consome, o quê e quando, podendo realizar exaustivos perfis dos seus compradores. A partir desse momento, oferecem-nos tudo aquilo que “precisamos” e compramos encantados. A nossa vida privada nas mãos das empresas converte-se numa nova fonte de negócio. Nós, nem damos conta disso.

O rasto do que compramos

Dizem que comprar no supermercado do futuro será mais prático, cómodo, ágil, rápido e não teremos que fazer filas nem passar pela caixa. Tudo, graças, entre outros, à tecnologia de identificação por radiofrequência ou etiquetas RFID. Umas etiquetas que contêm um microchip e que registam informação detalhada sobre a “vida” do produto no qual se encontram. São como um número de série único que armazena e emite, através de uma antena, dados específicos sobre esse artigo.

Assim, num futuro não muito longínquo, ao que parece, poderemos entrar num supermercado, pegar num carrinho de compras “inteligente”, carregar na sua base de dados a lista de compras, deixar que nos guie ao encontro desses produtos, dar- nos informação sobre os mesmos e ir calculando o total que estamos a gastar. E ao sair, não será necessário passar pela caixa, ao levar cada produto uma destas etiquetas incorporadas, uma antena recetora identificá-los-á e o total será descontado diretamente na nossa conta... e sem fazer filas. Que mais podemos pedir?

O problema está, como assinalaram grupos de consumidores nos Estados Unidos, como CASPIAN (Consumidores contra a Invasão da Privacidade dos Supermercados) e EPIC (Centro de Informação sobre Privacidade Eletrónica), no controle que estes sistemas exercem sobre as pessoas. Ninguém evita, por exemplo, que essas etiquetas possam continuar a acumular informação uma vez fora do supermercado, seguindo cada um dos passos dos produtos e de nós como consumidores.

Hoje, encontramos estas etiquetas RFID em alguns produtos dos supermercados, as quais convivem com os tradicionais códigos de barras. O seu custo, no entanto, limita por enquanto e em parte uma maior generalização. Ainda que, segundo o Instituto Nacional de Tecnologias da Comunicação e a Agência Espanhola de Proteção de Dados cada vez é mais frequente encontrá-las nas etiquetas de roupa e calçado assim como em sistemas para a identificação de animais domésticos, cartões de transporte, pagamento automático em portagens, passaportes, entre outros, pondo em risco a nossa privacidade.

Querem-nos fazer crer que os centros comerciais são sinónimo de liberdade. Agora, a rede Caprabo em Espanha apela, na sua publicidade, ao “livre comprador” que temos dentro de nós. “Damos-te tudo para que sejas livre de escolher o que mais gostas”, dizem. No entanto, a liberdade de escolher não está no supermercado mas fora dele.

Artigo publicado em publico.es a 29 de março de 2014. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net

Esther Vivas
Sobre o/a autor(a)

Esther Vivas

Ativista e investigadora em movimentos sociais e políticas agrícolas e alimentares. Licenciada em jornalismo e mestre em sociologia.
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