Enquanto discutíamos o acordo que daria origem à “Geringonça”, PSD e CDS ofereciam a TAP a David Neelman e preparavam a venda da CP e dos transportes de Lisboa e Porto, depois de já terem privatizado quase tudo o que restava. Mesmo antes das eleições, tinham criado novos obstáculos legais no acesso ao aborto. Na agenda estavam limitações ao direito à greve.
Durante a troika, o desemprego disparou, os salários recuaram vinte anos e o PIB quinze. A direita apontava pensionistas e funcionários públicos como problemas e fez tudo para cortar os rendimentos do trabalho[1]. A União Europeia recusava qualquer alteração de rumo e no debate político afirmava-se a existência de um “arco da governação” que coincidiria com o alinhamento europeu. Quem recusasse esse alinhamento não contaria para nada[2].
Enquanto isso, as manifestações do “Que se lixe a troika” juntaram multidões e amplos setores da esquerda encontraram-se na Aula Magna, nas lutas sindicais e em novos ativismos de reformados ou de auditoria à dívida. Contra todas as previsões, nas eleições de 2015 a esquerda teve quase 20% de votos[3]. De repente, a esperança fez-se força em votos e abriu uma possibilidade nova no panorama português. A direita coligada ganhou as eleições, mas PS e esquerda têm maioria e dão corpo à exigência popular de mudança. A direita tinha de sair.
A Geringonça foi produto desse tempo. Da urgência que atravessava a vida de cada pessoa e também dos sindicatos, das autarquias, das pequenas empresas, das ONGs. Quando a possibilidade de mudança se abriu, todo o país a abraçou. Foi como vir à tona da água e finalmente respirar.
Mas a Geringonça foi também o contexto das pressões da União Europeia e do capital, das impossibilidades autoimpostas pelo PS, dos impasses. Quem um dia pensou que teria sido bom ter ministros da esquerda no governo, em vez de um acordo apenas parlamentar, deve saber que esse governo teria caído em pouco mais de um mês, com a resolução do Banif[4].
A esquerda conquistou o que nunca tinha sido feito, mas ficou na ingrata posição de entregar o governo ao PS. E sabíamos dos riscos.
Há quem lembre os obstáculos impostos por Cavaco Silva, que exigiu um acordo escrito para reconhecer a nova maioria no parlamento. Na verdade, foi uma enorme ajuda. Ao contrário do Bloco, o PCP preferia não ter nada escrito. Como ficou rapidamente claro, o PS entendeu-se com a direita em tudo o que não estava explicitamente acordado.
Entre 2015 e 2019 viveu-se um período recuperação de direitos, dos rendimentos do trabalho e, não menos importante, de derrota da austeridade enquanto ideia hegemónica. A atualização anual do salário mínimo e das pensões, manuais escolares gratuitos ou passes para transportes são hoje dados adquiridos. Passado quase uma década, talvez seja difícil pensar que tenha existido um tempo em que tudo isto era considerado irresponsável e provocava a ira de Bruxelas.
Simultaneamente, o PS adiava o investimento público previsto e apoiava-se na direita para decisões sobre sistema financeiro, energia ou mercado imobiliário. As alterações à legislação laboral foram adiadas até ao final do mandato e acabaram votadas com o apoio de PSD.
Chegados às eleições de 2019, o apoio popular às conquistas desses 5 anos daria a vitória ao PS. Os custos do que foi adiado só ficariam visíveis mais tarde. O Bloco, ao contrário do PCP, optou pelo confronto público e permanente ao longo da legislatura[5]. Nas eleições aguentámos a pressão e mantivemos o mesmo número de deputados e deputadas. O PCP perdeu quase um terço da bancada. O PS ganhou sem maioria e a nova legislatura obriga a negociação.
Após as eleições, o Bloco propôs um novo acordo escrito. O PS recusou e teve o conforto do PCP; tudo seria visto medida a medida. Abriu-se o campo para o PS governar pela chantagem[6]. No debate público, a esquerda ficaria sempre com o ónus de sectarismo quando recusava o que o PS queria impor. Forças como o PAN ou o Livre ajudavam a essa narrativa. Entretanto, pela combinação entre a cristalização de algum sindicalismo tradicional e a reconfiguração em curso à direita, emerge uma nova agenda determinada pela extrema-direita. Todo o debate político se tornou mais pantanoso.
O Bloco considerou que não tinha condições para chumbar o primeiro orçamento da legislatura, num momento em que o PS ainda recolhia os frutos da geringonça. Estávamos no início de 2020. Seguir-se-ia uma pandemia e uma enorme sensação de insegurança em toda a sociedade. António Costa aposta no medo e ganha. Ao contrário do Bloco, o PCP ainda aprova o Orçamento do Estado para 2021. O seguinte já não passará e, com a crise que provocou em 2022, o PS consegue a maioria absoluta que preparava desde 2019. Acabaria por a perder, em pouco mais de um ano, e escancarar as portas à direita e à extrema-direita.
É certo que ninguém podia prever o impacto da pandemia, mas teremos de reconhecer que apenas acelerou o que já estava a acontecer e com erros que favoreceram a direita. À esquerda, o deslumbramento de alguns setores (incluindo na esfera do Bloco) pela negociação institucional em lugar do confronto público e do movimento social. No PS, a recusa absoluta em alterações na estrutura da economia.
Artigo publicado em Anticapitalista #76 – Outubro 2024
Notas:
[1] Incluindo leis que vieram a ser consideradas inconstitucionais.
[2] Em 2015, mesmo à esquerda, havia quem defendesse essa doutrina. O Livre – Tempo de Avançar, que não conseguiu eleger, explicava que questionar o Tratado Orçamental era impedir entendimentos à esquerda. O PS apresentou o programa eleitoral mais à direita de sempre e não questionava a necessidade de austeridade, apenas a intensidade. Em 2019, o PS votaria contra o Tratado Orçamental no Parlamento Europeu. Mas, nessa altura, já era fácil.
[3] O Bloco duplica face a 2011 e ultrapassa os 10%, a CDU sobe ligeiramente e fica acima de 8%.
[4] Uma resolução herdada de Maria Luís Albuquerque e adiada até dezembro de 2015, em que o PS aceitou integralmente as exigências da Comissão Europeia e que passou no parlamento só com o apoio da direita.