FUTURO LGBTIQ+: responder à ofensiva ultraconservadora

porJúlia Mendes Pereira

26 de janeiro 2022 - 10:17
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No que diz respeito aos direitos das pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgénero, intersexo, ou queer, mais outras pessoas diversas em termos de orientação sexual, identidade e expressão de género e/ou características sexuais, a última legislatura não foi fácil.

Apesar de algumas conquistas importantes, como a proibição da discriminação das pessoas LGBTIQ+ na dádiva de sangue, a ofensiva ultraconservadora aos direitos adquiridos deu os seus primeiros passos. Além de iniciativas do deputado da extrema-direita – nenhuma foi aprovada, mas já nos mostram os argumentos a serem desmistificados num futuro próximo – este período ofereceu-nos a decisão do Tribunal Constitucional sobre a promoção do direito à autodeterminação de género e à proteção das características sexuais nos sistemas de ensino, que declarou inconstitucional a regulamentação do Governo para a Lei aprovada em 2018 pela Assembleia da República. Lembremos que esta decisão veio responder a um conjunto de deputadas e deputados do PSD que acusaram essa mesma Lei de promover, num dos seus artigos, a “ideologia de género” nas escolas – numa tentativa de incendiar as alas mais extremistas da direita, com invenções dignas de Bolsonaro.

Apesar de algumas conquistas importantes, como a proibição da discriminação das pessoas LGBTIQ+ na dádiva de sangue, a ofensiva ultraconservadora aos direitos adquiridos deu os seus primeiros passos

Com esta decisão, o Tribunal Constitucional (TC), embora muito dividido, forçou a suspensão do “decreto das casas de banho”, como Chicão e companhia lhe chamaram de forma a diminuir e limitar um documento que disseminava algumas boas-práticas na inclusão de jovens trans ou intersexo nas escolas – incluindo, mas não se limitando, o direito a utilizar a casa-de-banho que lhes ofereça maior segurança. Depois do TC validar a retórica da “ideologia de género”, o mais preocupante foi a indisponibilidade da maioria parlamentar em responder ao desafio, à exceção do Bloco de Esquerda. Depois de ouvir ativistas e demais especialistas, o Bloco apresentou um projeto de lei para resolver rapidamente esta situação, e impedir que o ano letivo de 2021/2022 se iniciasse com essas medidas suspensas. O Partido Socialista remeteu-se ao quase silêncio sobre esta matéria, tendo a defesa do decreto-lei do Governo de António Costa, tal como foi feito publicar pelo Secretário de Estado da Educação e pela Secretária de Estado da Cidadania e Igualdade, ficado a cargo do PAN e da deputada não-inscrita Joacine Katar Moreira. Houve até lugar a vozes do PS que tentaram desvalorizar o teor e o significado do acórdão do TC, relativizando a situação.

Para a próxima legislatura, o Bloco propõe-se a ir mais longe. Mais que responder à ofensiva ultraconservadora que instrumentalizou o TC, propomos a criação de uma lei-quadro para a promoção do direito à autodeterminação de género e do direito à proteção das características sexuais que complemente os direitos já salvaguardados pela Lei em vigor desde 2018, definindo um conjunto de princípios a adotar por entidades públicas e privadas nas áreas da educação, da saúde, do trabalho, da habitação e da proteção social. Faz-se especialmente urgente a proteção das crianças e dos jovens, bem como do pessoal docente e não docente, visto que tanto os novos como os velhos conservadorismos estão prontos para instrumentalizar crianças e jovens nas suas campanhas ideológicas, difamatórias e de disseminação do ódio.

A defesa do Serviço Nacional de Saúde é uma linha-mestra do programa eleitoral do Bloco de Esquerda, e as pessoas LGBTIQ+ não são esquecidas. Além da Lei que se fez aprovar na Assembleia da República no sentido de proibir a discriminação nas dádivas de sangue, o Bloco tem-se empenhado na proibição das práticas abusivas e atentatórias aos direitos humanos, chamadas de “terapias” de conversão, nomeadamente através da campanha #NadaQueCurar. O Bloco mantém a proposta de criminalizar estas práticas de tortura, assim como de promover abordagens terapêuticas afirmativas e validadas cientificamente, incluindo o reforço das equipas multidisciplinares de saúde mental nos cuidados de saúde primários e o aumento significativo do número de profissionais de psicologia. No Serviço Nacional de Saúde, faz-se ainda urgente o efetivo acesso à saúde pelas pessoas trans e não-binárias, incluindo o reconhecimento de diferentes marcadores de género.

A defesa do Serviço Nacional de Saúde é uma linha-mestra do programa eleitoral do Bloco de Esquerda, e as pessoas LGBTIQ+ não são esquecidas

Os direitos adquiridos pelas pessoas LGBTIQ+ estão sob ameaça, e necessitamos de criar novas sinergias que permitam combater mais retrocessos. Para o Bloco, essa estratégia tem o seu pilar no robustecimento dos movimentos LGBTIQ+ e das suas organizações e ativistas, nomeadamente através do reconhecimento das organizações não-governamentais LGBTIQ+, uma medida que deverá ser, necessariamente, acompanhada pela criação de uma entidade pública com competências na área LGBTIQ+, e que seja uma estrutura democrática onde ativistas e organizações LGBTI+ tenham voz e participem da sua gestão. Estas medidas poderão dar o impulso necessário, além do enquadramento jurídico, para dar continuidade a propostas anteriores do Bloco, como a criação de uma rede nacional de centros de referência LGBTIQ+ nos principais centros urbanos. Estes centros de referência deverão estar devidamente capacitados para apoiar vítimas LGBTIQ+, tanto ao nível psicossocial como jurídico, devendo ter parte da sua atuação enquadrada por procedimentos de prevenção e denúncia de atos de violência homofóbicos, transfóbicos ou interfóbicos.

Os direitos adquiridos pelas pessoas LGBTIQ+ estão sob ameaça, e necessitamos de criar novas sinergias que permitam combater mais retrocessos

Depois da oportunidade perdida nos censos demográficos de 2021 para a recolha de dados sobre a diversidade da população residente em Portugal, tanto ao nível de dados étnico-raciais, como de dados aprofundados sobre o género, o sexo e a sexualidade da população, propomos colmatar esta necessidade com a realização de inquérito nacional sobre a diversidade populacional portuguesa, que enfoque também na orientação sexual, identidade de género, expressão de género e características sexuais, identificando as condições de vida e os problemas sociais específicos da população LGBTIQ+. O descaso do Estado com as pessoas LGBTIQ+ faz também urgente a adaptação de procedimentos e formulários da Administração Pública à realidade portuguesa, na sua diversidade sexual e familiar, assim como na inclusão das pessoas não-binárias e dos seus marcadores de género.

Hoje, como no passado, o Bloco de Esquerda tem programa para a defesa dos direitos das pessoas LGBTIQ+

Hoje, como no passado, o Bloco de Esquerda tem programa para a defesa dos direitos das pessoas LGBTIQ+. Estamos conscientes dos desafios trazidos pelo crescimento da extrema-direita, e do seu impulso às agendas ultraconservadoras que sempre se opuseram ao avanço dos direitos LGBTIQ+ em Portugal. Temos preparação para reagir e fazer deste país uma zona de liberdade para as pessoas LGBTIQ+, ao contrário das medidas defendidas por Morawiecki e Orbán para oprimir as pessoas LGBTIQ+ na Polónia e na Hungria. Ninguém se vai ver livre de nós! Vamos à luta!

Júlia Mendes Pereira
Sobre o/a autor(a)

Júlia Mendes Pereira

Ativista feminista, dirigente do Bloco de Esquerda, co-diretora da ONG Ação Pela Identidade - API
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