A fronteira de Darwin e o sistema nacional de saúde

porFrancisco Louçã

01 de junho 2015 - 0:09
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Depois de publicar “A Origem das Espécies”, Darwin reconsiderou todo o debate causado pelo evolucionismo num novo livro, “A Descendência do Homem”. Pergunta Darwin, como se explica que, contra todo o sentido da competição, escolhamos nós, em sociedade, apoiar, tratar e cuidar dos velhos e dos doentes?

Dizia o fim de semana passado António Arnaut que há “uma direita reacionária” no poder em Portugal, “presidida por um neoliberal assanhado”, que quer destruir o serviço nacional de saúde. Tem toda a razão. Mas não é preciso ser um liberal muito “assanhado” para querer este naco de mercado. Basta mesmo ser liberal ou, simplesmente, pensar como ele.

O problema do fundamento social da proteção aos doentes, aliás, não é novo. Poucos anos depois de publicar “A Origem das Espécies”, Darwin reconsiderou todo o debate causado pelo evolucionismo num novo livro, “A Descendência do Homem”, em 1871. Marcado pelos conceitos culturalmente dominantes entre a elite britânica da época vitoriana, o livro reage mesmo assim a uma perplexidade: se a seleção – isto é, a que resulta da competição por recursos escassos – domina a natureza, como se explica a própria existência da sociedade, onde além de competição temos cooperação? E, pergunta Darwin, como se explica que, contra todo o sentido da competição, escolhamos nós, em sociedade, apoiar, tratar e cuidar dos velhos e dos doentes?

A resposta de Darwin, traduzida em termos modernos, é que a sociedade seleciona as propriedades anti-seletivas da humanidade: em vez de competição que anule os derrotados, ajudamos os mais necessitados porque é só assim que podemos viver uns com os outros. Os liberais extremistas, que defendem que a sociedade melhora com a competição e a seleção, deveriam lembrar-se do que nos ensina Darwin: é a solidariedade que deve predominar contra a violência seletiva e sem isso não podemos viver.

Quando se discute o sistema de saúde, quase século e meio depois, deveriam por isso os privatizadores lembrar-se de Darwin e da seleção anti-seletiva. Os privatizadores argumentam que o sistema de saúde pode ser mais dinâmico se for liberalizado. Uma espécie de insuficiência genética do serviço público impedi-lo-ia de ser eficiente.

Mas o fundo da questão está ainda na natureza da saúde, o paradoxo de Darwin. A saúde só interessa aos privados como mercado apetecível justamente porque não é um mercado: não há relação entre oferta e procura (dada a assimetria de poder entre as partes, entre o médico e o doente), a informação é oligopolizada (e dominada pela indústria farmacêutica), os preços são sempre garantidos acima do custo médio ou marginal, o conflito de interesses entre a medicina no público e privado tem garantido que a saúde fica sequestrada pelos interesses, a própria formação é certificada fora do Estado (é a Ordem dos Médicos que certifica os especialistas, e não o ministério da saúde). Por isso, a rentabilidade real e potencial deste mercado limitado é ilimitada, desde que a medicina privada cuide dos ricos e que o sector público a vá subsidiando. Temos assim as maiores taxas de lucro, com o Estado a funcionar como re-segurador do privado. Numa palavra, a situação celestial para qualquer empresário: faça o que faça, os clientes estão à porta e, mesmo que não estejam, fatura-se.

Todos nós temos então uma fronteira de Darwin, em particular na saúde: ou optamos pela seleção ou pela seleção anti-seletiva. Ou pelo mercado ou pela sociedade. É essa a diferença que determina o futuro dos serviços sociais.

Ora, os governos recentes, todos, optaram pelo pirateamento do sistema de saúde. Sócrates entregou os novos hospitais a Parceiras Público-privado com os Mellos, com os Espírito Santo e com os hospitais Privados de Portugal, entretanto vendidos e revendidos a quem apareceu, enquanto Passos Coelho e Portas continuaram a missão: estão todos além de Darwin. E não eram ou são mais “assanhados” do que a média europeia. São simplesmente liberais que aplicam a receita liberal. Ou que pensam como eles. Ainda bem que Arnaut lembra a ameaça que constituem para todos nós.

Artigo publicado em blogues.publico.pt a 27 de maio de 2015

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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