Abriu o debate sobre a futurologia do passado. Há um traço de identidade entre aqueles que garantem que o acto de rebelião na Rússia era apenas uma fatalidade à espera de acontecer e os que antecipam os vencedores da contenda entre Putin e Prigozhin, garantindo o peso relativo da vitória das forças em disputa. Subitamente, tudo se torna claro. A força da mudança faz-se aos golpes, ainda que de Estado, abortados a poucos quilómetros de Moscovo pela influência de amigos bielorrussos que deixaram a arte de manobrar fantoches para serem uma reserva de paz e acantonamento para o gigante vizinho. Lukashenko recebe Prigozhin e coloca-o em parte incerta, enquanto as forças do Grupo Wagner abdicam de poder operar na Rússia ao recusarem realizar contratos com as forças de segurança russas que lhe retirariam poder, autonomia e autoridade. Fica a ideia de um golpe de Estado falhado e da existência de uma qualquer janela aberta num edifício alto para Prigozhin na Bielorrússia. E ainda há quem defenda que Putin saiu derrotado após desatar o abraço de urso.
A margem de incerteza é gigante mas os factos são factos. Pouco depois do líder do Grupo Wagner assegurar que a Rússia teria um novo presidente, a rebelião que pretendia tomar Moscovo acaba a emigrar para parte incerta do país vizinho. E esse dado, sendo as forças mercenárias de extrema-direita a grande ameaça ao regime de Putin, é relevante para que ninguém possa olhar para o desfecho como uma fractura exposta do presidente russo. No jogo das matrioskas há muitas verdades que encerram segredos mas encontramos maior surpresa na forma determinada como Putin conteve a insurreição do que no fogo que Prigozhin resolveu atear mas foi, fulminantemente, “convocado” a extinguir.
A insistência do pedido norte-americano para que a Ucrânia não atacasse a Rússia durante a rebelião russa é um belo sinal de respeito pela dúvida. Aliás, a dúvida não é nada que os EUA não tenham como certo. Por um lado, o sentido táctico de não permitir que Putin se vitimizasse à escala internacional. Por outro, a elementar respiração de deixar que tudo o que estivesse para acontecer acontecesse. Por incapacidade de controlar ou conter danos. O alarme sobre um eventual derrube do regime por forças de confronto que nada têm de oposição e nada representam como projecto de reforma de governação foi real durante algumas horas. A vitória de Prigozhin apenas colocaria sangue e violência ao lado da agenda dos protagonistas da substituição, nomeadamente aqueles que consideram o recurso ao nuclear cirúrgico como a única forma da Rússia ganhar esta guerra.
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 30 de junho de 2023