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FMI e Biden querem impostos sobre o capital. O mundo ao contrário?

A novidade serve duas lições – a da pouca firmeza dos liberais no seu modelo económico e da necessidade da esquerda subir a parada no combate às desigualdades sociais. Esta proposta do FMI, é acima de tudo um processo de controle de danos.

Um imposto extraordinário sobre as empresas que mais lucraram durante a pandemia não é coisa que se espere de alguém que foi ministro de Pedro Passos Coelho.

A primeira vez que ouvi a ideia foi pela boca de Miguel Poiares Maduro e confesso que tive dificuldade em encaixar o discurso no personagem. Um imposto extraordinário sobre as empresas que mais lucraram durante a pandemia não é coisa que se espere de alguém que foi ministro de Pedro Passos Coelho.

A proposta acabou por ser concretizada pelo Fundo Monetário Internacional em termos inéditos: um apelo aos governos para um reequilíbrio fiscal nacional e internacional através de um aumento extraordinário e temporário dos impostos sobre a riqueza. À cabeça deste novo internacionalismo monetário surgiu Joe Biden, com intenção de quase duplicar o imposto sobre mais valias nos Estados Unidos da América. No Reino Unido a carga fiscal sobre as empresas poderá subir de 19% para 25%, a maior subida desde os anos 1970.

Teremos ouvido bem? “Os ricos que paguem a crise”? Não consta que nenhuma destas instituições seja afeta à área socialista onde são comuns as ideias de redistribuição da riqueza mas nada disto bate certo com a cartilha liberal. A cartilha liberal diz que é nestas alturas que se alivia a carga fiscal do capital para “não atrapalhar” a recuperação económica nem provocar fuga de investimentos. A cartilha liberal diz que os cortes são feitos pelo lado do trabalho e do investimento público. A cartilha liberal diz “custe o que custar”. O que é que mudou?

A realidade social não está para cartilhas liberais. Até o FMI reconhece que a capacidade de resposta dos sistemas públicos de saúde e de proteção social são fatores de estabilidade política, e que o agravamento das desigualdades sociais ameaça a estabilidade social. Perante a necessidade de responder à pandemia, um programa de cortes no investimento público à medida do memorando da troika seria encarado pelo povo como uma declaração de guerra. Há necessidade reforçar as respostas públicas mas muito pouco “espaço fiscal” e ninguém quer brincar com a estabilidade do sistema financeiro - muito menos o FMI.

O capitalismo não tem crises de consciência mas os governos têm medo de perder o poder. A mudança de comportamento da União Europeia e o aparente abandono da retórica austeritária não são alheios às altas taxas de popularidade do investimento público e da taxação de quem enriqueceu com a crise. Pode significar abandonar a cartilha, mas a cartilha é gasolina sobre os antagonismos sociais e favorece os Trumps que espreitam em cada esquina. É uma questão de sobrevivência política.

A novidade serve duas lições – a da pouca firmeza dos liberais no seu modelo económico e da necessidade da esquerda subir a parada no combate às desigualdades sociais. Esta proposta do FMI, que é acima de tudo um processo de controle de danos, não põe em causa a relação de forças preexistente entre capital-trabalho e mal arranha o privilégio histórico dos 1%. Nos EUA, o aumento de impostos não chegará sequer a metade desse topo mais rico. Em Portugal, não levanta o cutelo chamado Tratado Orçamental, não devolve ao controlo público as grandes e lucrativas empresas estratégicas do país, não levanta o bloqueio patronal às alterações da lei laboral. Não altera as condições estruturais da desigualdade.

No entanto, há um bem simbólico nesta nova forma de financiar o investimento público: o reconhecimento liberal da virtuosidade dos impostos.

O mundo ao contrário? Não, é só a mesma letra para outra música: “não há graça que não faça o FMI”.

Artigo publicado no jornal “I” a 6 de maio de 2021

Sobre o/a autor(a)

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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