É uma luta vem de há pelo menos 10 anos. Esta semana concluiu-se um longo processo negocial sobre o regime de contribuições dos trabalhadores a recibo verde. Nos acordos assinados em novembro de 2015 entre o PS e o Bloco de Esquerda e entre o PS e o PCP anunciava-se já o compromisso de rever o regime da segurança social dos trabalhadores independentes. Em 2016 houve uma norma no Orçamento e iniciou-se um grupo de trabalho entre o Governo e o Bloco para analisar o assunto, mas nada ficou concluído. Em 2017, a maioria parlamentar aprovou uma autorização legislativa que balizava os aspetos essenciais do que seria um novo regime. Durante o ano, desenvolveu-se um intenso e tecnicamente exigente trabalho entre Bloco e Governo para afinar os vários aspetos de um novo modelo, a partir da recolha de dados e da simulação hipóteses. O ponto de partida era diferente. O resultado final, não sendo perfeito, é um vitória para os recibos verdes.
No Parlamento, Bloco, PS e PCP já saudaram as alterações acordadas. Garantir uma aproximação entre o rendimento do trabalhador em cada período e os descontos, uma repartição mais justa da responsabilidade contributiva entre trabalhador e entidade contratante e o reforço significativo da proteção social são obviamente boas notícias para os trabalhadores independentes. Era difícil, mas conseguiu-se uma mudança de fundo. As poucas vozes incomodadas decidiram reagir discretamente, certamente por perceberem a força da proposta e do seu apoio social.
Não repetirei, neste texto, o conteúdo das principais transformações acordadas. Sobre elas, já falei e abunda análise jornalística. Comento apenas três aspetos que suscitaram críticas ou dúvidas legítimas.
“O aumento de custos sobre as empresas”
A primeira crítica veio, como se previa, das confederações patronais. António Saraiva, presidente da CIP, veio lamentar “o aumento dos custos sobre as empresas”. Ora, um dos objetivos do novo regime é justamente acabar com uma situação em que o trabalhador independente arca com a totalidade dos encargos da proteção social, com uma taxa demasiado alta (29,6%) para uma proteção social de segunda ou mesmo inexistente. A forma de aliviar os trabalhadores e reforçar a sua proteção é co-responsabilizar quem contrata. Achar que a “competitividade da economia” se faz através do desequilíbrio e da desproteção é uma ideia sem futuro. Por isso, o lamento tímido dos patrões, e até alguma chantagem que façam nos próximos dias, estão condenados ao fracasso. A maioria do país percebe que o que se pede a quem contrata é o mínimo de justiça. Se a repartição dos “custos” peca por alguma coisa é por defeito e não por excesso.
O problema dos falsos recibos verdes
Uma preocupação diferente foi levantada por Arménio Carlos. O secretário geral da CGTP, reconhecendo que há uma “evolução” positiva no regime de contribuições, preferiu enfatizar que as alterações “não resolvem o problema dos falsos recibos verdes”. Tem toda a razão. Mas a transformação do regime de contribuições nunca teve esse propósito: não é pelo regime contributivo, por mais justo que ele seja, que se ataca esse problema, mas sim pelo reconhecimento de contrato de trabalho a todos os que não sejam verdadeiros trabalhadores independentes. Isso faz-se através do reforço da inspeção do trabalho e da aplicação vigorosa da lei que estabelece a “ação especial de reconhecimento do contrato de trabalho”, cuja aprovação no passado mês de julho foi uma grande vitória dos movimentos de precários. Seria absurdo, contudo, utilizar o combate sem tréguas aos falsos recibos verdes, que a Esquerda tem feito, como pretexto para não melhorar o regime dos trabalhadores independentes e para manter descontos injustos e ilógicos, perpetuando uma proteção social amputada para centenas de milhares de pessoas.
Não haverá casos em que se paga mais?
A última questão que surge é a de saber se, com estas alterações, os trabalhadores que saem beneficiados com maior proteção social e com descontos mais justos, vão também pagar menos no final de cada mês. A resposta genérica é fácil. Como a taxa é menor, a contribuição do conjunto dos trabalhadores é menor. Com o novo modelo, estima-se em 100 milhões de euros o que será poupado pelos trabalhadores. Esta redução é compensada por um reforço do que as entidades contratantes pagam. As simulações podem ser feitas tendo em conta o conceito de rendimento relevante e os ajustamentos que o trabalhador pode fazer: o modo mais simples é utilizar a taxa efetiva para o trabalhador, que passa a ser de 11,24%, como explica o Jornal de Negócios.
Mas o sistema é tão diferente que a comparação mensal direta não é tão simples e aí, como dizia o mesmo jornal, é preciso analisar os casos concretos. Primeiro, porque o desconto deixa de ser apurado anualmente e passar a ser por trimestre (uma boa notícia, sobretudo para quem tenha rendimentos irregulares). Depois, porque acaba finalmente a lotaria dos escalões que faz com que, pela diferença de um euro no seu rendimento, um trabalhador mude de escalão e pague o dobro (ou metade) do seu colega. Com o fim dos escalões a taxa é uma proporção direta do rendimento e isso muda as contas.
Tomemos, por exemplo, alguém que ganhe uma média de 500€ por mês no primeiro trimestre, de 1150€/mês no segundo, de 700€ no terceiro e de 900€ no quarto. No sistema em vigor tem uma média mensal de rendimento de 812€, o que dá origem a uma contribuição de 124,71€ mensais, sempre igual ao longo do ano. Com o novo regime vai pagar a contribuição em função do rendimento no trimestre: 56,2€ por mês no primeiro; 129,26€ no segundo; 78,68€ no terceiro; 101,16€ por mês no último. Ou seja, não paga sempre menos. No segundo trimestre paga mais 4,5€ por mês. Mas no terceiro trimestre paga menos 45€. Ao fim do ano, em vez de 1496,5€ de contribuição, terá pago 1096€, que é menos 400€. A comparação tem, pois, de ter em conta estas diferenças, para além do que se ganha em proteção social e da possibilidade de permanecer no sistema com uma contribuição de 20€ quando não se tem rendimento. Esta é a chave do regime que resultará das novas regras: a justiça relativa que introduz ao aproximar contribuição e rendimento e o robustecimento da proteção. É perfeito? Certamente que não. Mas é um enorme avanço.
Artigo publicado no site do Expresso, 15 de dezembro de 2017, corrigido a 18 de dezembro às 13.35h
