Filhos de “raça”

porSandra Cunha

29 de junho 2016 - 12:00
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Quando se pensa em ter um filho o que se deseja?

Se fizermos esta pergunta a familiares, conhecidos ou amigos, com filhos ou que os desejem ter, a breve trecho ou num futuro ainda incerto, verificamos que no topo das respostas, surge habitualmente o desejo de que seja saudável. Quem projeta para o futuro, deseja que seja feliz. Há quem deseje um, dois, três ou uma equipa de futebol. Menino ou menina surge normalmente como um dos desejos do final da lista.

Quando a parentalidade acontece por via da adoção juntam-se outras escolhas, nomeadamente a “raça” da criança.

Os formulários de candidatura à adoção perguntam especificamente aos candidatos se “aceitam adotar uma criança de raça diferente da sua”. No decorrer do processo de avaliação, a questão volta a ser colocada. Os candidatos à adoção escolhem a condição de saúde, a idade ou o intervalo de idades das crianças a adotar, o sexo e a “raça”.

Em vários países, a escolha da “raça” da criança foi banida do leque de opções nos processos de adoção. Em Portugal o debate em torno desta questão tem sido inexistente. Mas é um debate que importa iniciar.

O artigo 13º da Constituição da República Portuguesa proíbe expressamente a discriminação em razão da ascendência ou raça. Poderemos então considerar que ao contemplamos esta opção para a adoção de crianças estamos a permitir, ou até a promover, a discriminação das crianças de “raça” diferente da maior parte do universo de candidatos à adoção em Portugal?

E será ético escolhermos a “raça” de um filho ou filha?

Os serviços e técnicos com responsabilidade em matéria de adoção justificam a existência deste critério nos processos de candidatura à adoção com a necessidade de chegar ao melhor ajustamento possível entre a criança desejada e as expectativas dos candidatos – o chamado matching. De modo a evitar ao máximo as integrações mal sucedidas ou as «devoluções» de crianças em período de pré-adoção (casos pouco comuns, mas ainda assim existentes), o matching procura responder aos anseios dos futuros pais e mães integrando crianças que se assemelhem o mais possível aos filhos ou filhas que nasceriam por via biológica naquela família. Busca-se a relação mais semelhante ao vínculo de filiação natural. As parecenças físicas têm, consequentemente, uma importância considerável para este objetivo.

Assim, a bem do processo de integração, da adaptação da criança e da família – nuclear e alargada, da aceitação na escola e na comunidade, procuram-se as crianças fisicamente mais parecidas aos candidatos à adoção.

Por outro lado, o paradigma atual da adoção tem como uma das suas premissas fundamentais, o direito da criança à sua história e assim, o dever da revelação à criança sobre a sua condição de “adotada”. Aconselham-se os e as candidatas a abordarem o tema com naturalidade, tanto com a criança como junto da família alargada, na escola ou na comunidade e a encarar e abraçar a parentalidade por via da adoção como uma forma tão legítima de parentalidade quanto a biológica, procurando-se assim combater a ideia da relação adotiva como relação de substituição, secundária, menor ou de último recurso.

Tendo esta premissa por base, podemos então questionar-nos sobre a consequência da prática de matching. Não acabará, em certa medida, por diluir esta realidade da adoção e menorizar a legitimidade da relação adotiva ao tentar, por via do matching, fazê-la passar o mais possível por uma relação biológica?

Não se pretende, afinal, uma relação de filiação por via da adoção vivida abertamente, plenamente, que se assume enquanto relação legítima, independentemente das características das pessoas envolvidas e da forma como aparece aos olhos dos outros?

Ou será o sucesso da integração das crianças adotadas na nova família inconciliável com esta vivência aberta da relação de filiação adotiva e condicionada à garantia e à segurança das parecenças físicas entre crianças e candidatos?

Deverá a opção de escolha da raça da criança pretendida manter-se nos processos de candidatura à adoção?

Ou será esta opção uma porta aberta à discriminação e a uma desvirtualização do paradigma atual do instituto da adoção?

Artigo publicado em acontradicao.wordpress.com

Sandra Cunha
Sobre o/a autor(a)

Sandra Cunha

Feminista e ativista. Socióloga.
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