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Fervores e curiosidades do obscurantismo
Enlevado pelo seu fervor religioso, um cronista, Gomes Sanches, abalançou-se a destroçar os que “acusam a Igreja de obscurantismo” e que, para tal, se atrevem a fazer “tabula rasa a (...) Nicolau Copérnico (esse mesmo)” e outros, “todos sacerdotes católicos” que, entre outras maravilhas, produziram “a teoria heliocêntrica e o desenvolvimento da astronomia moderna”. A segunda parte é exata: Copérnico, cónego na catedral de Frombork, foi o criador da teoria heliocêntrica. No entanto, a sua história desmente a primeira parte daquela afirmação: “esse mesmo” adiou durante toda a sua vida a publicação do seu livro por temer a sua própria Igreja, ao passo que Bruno foi queimado na fogueira da Inquisição e Galileu condenado a prisão domiciliária perpétua.
A teoria de Copérnico foi criada cedo. Em 1514 divulgou entre amigos um anónimo “Pequeno Comentário” de uma trintena de páginas, com o seu modelo do sistema solar: a Lua é o satélite da Terra, cuja órbita rodeia o Sol, tal como os outros planetas, e as estrelas são fixas. No entanto, recusou-se a publicar esse texto. Vinte e cinco anos depois, um jovem astrónomo da Universidade de Wittenberg, o luterano Georg Rheticus, foi ter com ele e tomou a iniciativa de editar um resumo desta teoria, a “Primeira Narração”. Copérnico tinha então quase 70 anos. Quando em 1536 um admirador, o cardeal Schonberg, lhe tinha pedido o livro inédito, Copérnico respondera que o mantivera em segredo por 36 anos, e ainda esperou mais sete. E quando “Das Revoluções das Esferas Celestes” chegou finalmente às suas mãos, a 24 de maio de 1543, Copérnico estava no leito da morte, tendo fechado os olhos umas horas depois. A razão para este atraso foi unicamente o medo da censura católica. De facto, o livro só foi impresso por intervenção de dois protestantes: o seu único discípulo, Rheticus, e outro amigo que se encarregou do trabalho gráfico, Andreas Osiander, na cidade luterana de Nuremberga.
O obscurantismo foi uma treva contra a ciência, não a promoveu
O próprio Lutero comentou as ideias de Copérnico como uma infidelidade à letra da Bíblia, menorizando “um certo astrólogo que queria provar que a Terra se move e não o céu, o Sol e a Lua”, um “louco”. No entanto, foram aqueles dois professores da sua própria universidade e convictos luteranos que asseguraram a edição do tratado de Copérnico. Foi mais tarde outro luterano, Kepler, quem conduziu a divulgação da teoria copernicana. Curiosamente, os três, Rheticus, Osiander e Kepler, podiam conhecer a posição sobranceira de Lutero, mas isso em nada os demoveu do seu trabalho em prol da ciência. Em contrapartida, os católicos tinham outra razão para o medo: o obscurantismo repressivo que se chamava Inquisição.
A leitura obscurantista
A razão para a crítica por Lutero não foi detalhada e ele nunca mais voltou a falar do assunto. Referiu-se unicamente a uma passagem da Bíblia Hebraica, no Livro de Josué, o sucessor de Moisés, que conta a história do dia em que o exército judeu enfrentou as forças da cidade de Maqueda e o profeta ordenou ao Sol que parasse no firmamento, obtendo assim o sinal para destruir o inimigo: “E o Sol parou e a Lua não se moveu, até que o povo se vingou dos seus inimigos” (Josué, 10:12-13). Parou durante quase um dia, diz-nos o livro, e os reis locais foram mortos e pendurados numa árvore. Isso permitiu a conquista da cidade, “destruindo a fio de espada tudo o que nela havia, sem deixar escapar ninguém” (Josué, 10:28). Não é uma história de compaixão, é o hino guerreiro de uma chacina que é parte da lenda da conquista da Terra Prometida. Mas se o Sol parou é por ser o Sol que se move, concluíram os dogmáticos.
Os teólogos do Vaticano, que proibiram o livro em 1616, usaram este e mais argumentos de uma leitura literalista da Bíblia, baseando-se por exemplo no Primeiro Livro de Crónicas em que está escrito que “Deus firmou o mundo para que não se mova” (1 Crónicas, 16:30). Contra esses teólogos ergueu-se Kepler, que argumentou que na Bíblia não se pode ler uma cosmologia, muito menos os princípios da astronomia (escreveu Kepler que não se pode levar à letra a pergunta: “És capaz de atar as cordas que seguram a constelação das Plêiades ou desatar as de Orion?”, Job, 38:31). O católico Galileu, empolgado por esta controvérsia, escreveu a Kepler para lhe dizer que também ele partilhava a mesma opinião... mas então só em segredo.
Perseguição
Quando escreveu as suas conclusões sobre o copernicanismo, Galileu foi condenado (só foi reabilitado 359 anos depois da proibição dos seus livros). Como lembra o padre Anselmo Borges (2004, “Religião — Opressão ou Libertação?”, p.159), o Index incluía as obras, entre outros, de Dumas, Zola, Balzac, Flaubert, Bergson, Montesquieu, Copérnico, Galileu, Descartes, Pascal, Hume, Espinosa, Hobbes, Locke, Kant, Rousseau, Voltaire ou o Dicionário Larousse — a lista só foi abolida em 1966. A própria ideia do pensamento livre, e portanto da ciência, foi condenada pela encíclica “Mirari Vos”, do Papa Gregório XVI, em 1832, que determinava que “a liberdade de consciência é doutrina absurda, enganosa e, para dizer melhor, loucura”. Quanto ao livro de Copérnico, “esse mesmo”, a ciência que resultava do pensamento livre baseado em factos, só foi autorizado pelo Vaticano cerca de trezentos anos depois da sua publicação. O obscurantismo foi uma treva contra a ciência, não a promoveu.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 11 de agosto de 2023
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