Fernando Medina é “os outros”

porMariana Mortágua

22 de julho 2023 - 22:10
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O Portugal do passinho-menor-que-a-perna ficará sempre atrasado, porque as condições de crescimento não passam no garrote da contenção orçamental.

A obsessão orçamental é um dos mais bem sucedidos empreendimentos neoliberais. Tornou-se senso comum, isento de motivação ideológica.

Entre a lenda do país “acima das suas possibilidades”, de Gaspar e Albuquerque, e a do “passo maior que a perna”, de Costa e Medina, vai apenas o tempo de uma conjuntura política e económica. São refrães da mesma canção batida. O artigo do ministro das Finanças no Expresso, sob a solene invocação de um “compromisso nacional para as finanças públicas”, é uma nova versão desse tema de sempre.

O texto começa com um equívoco lateral mas pouco inocente. O ministro acusa de dogmatismo quem critica a folga orçamental. Ora, esta folga é o sistemático incumprimento, por excesso, das metas definidas pelo Governo. Não por acaso económico ou incompetência política, mas por estratégia manipulatória, que visa condicionar o debate democrático sobre possibilidades e prioridades orçamentais.

O ministro das Finanças inventa ainda um novo negacionismo: “Um país que está a recuperar a sua credibilidade financeira não tem folgas orçamentais.” Comecemos pela perigosa tradição de elevar adágios populares a teoria orçamental — “quem não tem dinheiro não tem vícios” — ou pelo termo “credibilidade”, que enquadra a dívida pública como um problema de idoneidade e honradez. Uma triste validação do preconceito que há dez anos explicou a crise das dívidas soberanas com a preguiça irresponsável do sul. Para terminar, a ideia pequenina de que o país não pode ter prioridades e aspirações para lá da aceleração do pagamento da dívida.

O Portugal do passinho-menor-que-a-perna ficará sempre atrasado, porque as condições de crescimento não passam no garrote da contenção orçamental.

Com base nestes mandamentos, Medina assegura que pode haver negociações com professores, desde que a despesa estrutural não aumente. São recusadas carreiras decentes aos profissionais da saúde ou da justiça; é decretado o empobrecimento dos salários ou descida de impostos sem impacto real; enganam-se os pensionistas acerca dos seus direitos legais; adiam-se investimentos.

Nenhuma destas contenções é um ato de coragem, bom senso ou honestidade orçamental. A “poupança” em investimentos essenciais regressa mais tarde como despesa adicional: quanto teríamos poupado em tarefeiros, contratação de serviços e aluguer de material com investimento atempado na saúde e na ferrovia? Quanto será desperdiçado em fundos europeus devido ao depauperamento sistemático do Estado em quadros técnicos capazes de processá-los e geri-los?

O Portugal do passinho-menor-que-a-perna ficará sempre atrasado, porque as condições de crescimento não passam no garrote da contenção orçamental. E por muito “contrato social” que pontue o artigo de Medina, o próprio reconhece a desvalorização dos salários face à inflação e que o país empobrece. Atenção às letras pequeninas deste “contrato social” de empobrecimento.

Esta triste condenação é apresentada como inevitável: se aplicarmos o excedente em políticas públicas, o que nos espera é a punição de Bruxelas e Frankfurt, carregada dos “interesses, preconceitos e ideologias de outros”. Face à assustadora confissão ideológica de Medina — soberania é não confrontar os “interesses, preconceitos e ideologias de outros” —, percebe-se a sequência de lugares-comuns e preconceitos neoliberais da pena do ministro. Afinal, Medina é os outros.


Artigo publicado no Expresso, 21 de julho de 2023.

Sobre o/a autor(a)

Mariana Mortágua

Deputada. Coordenadora do Bloco de Esquerda. Economista.
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