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Fascismo circular

Eco e Pasolini, e não os podemos ignorar, viviam uma memória que nos alerta ainda hoje para as tragédias passadas, que todas começaram por ser implausíveis.

Cinquenta anos depois da libertação de Itália, a 25 de abril de 1995, Umberto Eco apresentou uma conferência na Universidade de Columbia. O título era “O Fascismo Eterno” (foi publicado como “Ur-Fascism”, na “New York Review of Books”) e não era um exercício de adivinhação, mas antes uma reflexão sobre as continuidades pesadas na História. “Seria muito fácil para nós se aparecesse na cena mundial alguém que dissesse: ‘Quero reabrir Auschwitz, quero que os Camisas Negras voltem a desfilar nas praças italianas.’ A vida não é tão simples. O fascismo [o fascismo eterno] pode surgir com o mais inocente dos disfarces. O nosso dever é descobri-lo e assinalar qualquer das suas instâncias, todos os dias, em todas as partes do mundo.” Havia nisto uma indignação da vontade e, ao mesmo tempo, uma resignação com o tempo passado, que outras figuras da cultura italiana partilhavam: Pier Paolo Pasolini, num livro curioso, “Escritos Corsários”, 20 anos antes, tinha descrito a Itália como “um país circular, como o Leopardo de Lampedusa, em que tudo muda para continuar como antes, um país sem memória que, se se preocupasse com a sua história, saberia que os regimes são portadores de antigos venenos, de metástases invencíveis”. Itália parece estar a dar-lhes razão, com a provável vitória de uma coligação das direitas chefiada pela herdeira direta dos mussolinianos.

O uso do termo “fascista” tem sido muitas vezes desvirtuado e descontextualizado, tendendo a ignorar que um fascista no governo pode não conseguir criar imediatamente um governo ou um regime fascista, é o caso de Bolsonaro, ou que há autoritarismos bufanescos, como foi o de Trump, que reproduzem traços populistas do fascismo sem o alcançarem. No entanto, Eco e Pasolini, e não os podemos ignorar, viviam uma memória que nos alerta ainda hoje para as tragédias passadas, que todas começaram por ser implausíveis. A vertigem do desespero atual, o pasto dos pós e neofascismos, é a herança dos que ignoraram e colaboraram e, se o príncipe da Europa, o mais lídimo dos representantes do centro, Mario Draghi, assim desaparece pelas traseiras do seu fracasso e o Partido Popular Europeu bendiz o Governo de extrema-direita, os avisos que ouvimos são para serem levados a sério.

Artigo publicado no jornal “Expresso” a 23 de setembro de 2022

Sobre o/a autor(a)

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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