A farmácia de Augusto Santos Silva

porJoana Mortágua

14 de fevereiro 2023 - 17:02
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Quem ler o texto de A.S.S. fica com a sensação de que a extrema-direita nos caiu em cima por geração espontânea, obra e graça dos ventos da história, sem responsabilidades que possam ser assacadas.

No passado dia 5 de fevereiro, Augusto Santos Silva (A.S.S.) publicou neste jornal o texto “Remédios contra o avanço da extrema-direita na Europa”.

O assunto é sério. O avanço das forças antidemocráticas arrisca pôr em xeque o paradigma das democracias criado no pós-Segunda Guerra Mundial. Substituir a declaração dos direitos humanos por um qualquer tratado obscurantista assinado por Le Pen, Orbán e Meloni, Putin e Bolsonaro condenaria a Europa e o mundo a uma nova era de violência e repressão.

Não é a avaliação da perigosidade do vírus que me separa de A.S.S. O texto começa por enunciar a tese do cordão sanitário, aconselhando um duplo foco que recuse a equivalência entre extremos e denuncie o populismo onde quer que ele exista. Também aqui estamos genericamente de acordo, embora muito fique por dizer sobre este mal-amado substantivo, hoje utilizado a torto e a direito para designar até o que é antagónico.

Chamou-me a atenção o capítulo sobre “as responsabilidades da esquerda democrática”. Darei de barato a presunção implícita na nomeação da sua “área política”, assumindo que A.S.S. utiliza uma referência historicamente datada. O que me interessa é analisar as responsabilidades que atribui ao “centro-esquerda” no combate à extrema-direita. Assim as encontrei: demarcar-se da extrema-direita; denunciar o populismo; combater os líderes e os movimentos extremistas, não o seu eleitorado; coerência; e não se deixar iludir pelas lutas de trincheira em torno das “identidades”.

O que me espantou, mais ainda por conhecer o trabalho intelectual de A.S.S., foi a ausência de uma explicação. Quem ler o texto fica com a sensação de que a extrema-direita nos caiu em cima por geração espontânea, obra e graça dos ventos da história, sem responsabilidades que possam ser assacadas. Não há referência ao desastre da liberalização dos mercados que marcou a governação dos partidos “da área política” de A.S.S.; nada sobre a austeridade violentamente imposta aos povos, as relações quase coloniais com o diretório europeu ou a desvalorização sistemática do trabalho nos subterrâneos da festa descarada do sistema financeiro.

Não há país onde o crescimento da extrema-direita não tenha sido precedido de dois fatores: predação do sistema económico (traduzida em desigualdade e empobrecimento) em simultâneo com a exposição de casos de corrupção ou de promiscuidade entre política e negócios. Mas A.S.S. propõe-se a explicar como “não passarão!” sem apresentar uma tese sobre como passaram os que já cá estão, e qual foi o papel da conversão da social-democracia em social-liberalismo (dita 3.ª via) nesse percurso.

Não basta dizer que é preciso representar os trabalhadores e os nómadas digitais, os migrantes e os empreendedores, falta explicar qual é o papel do Estado na relação com esses setores. A extrema-direita infeta por onde é mais difícil tapar a ferida: no ressentimento social e no medo, contra os imigrantes e os pobres, contra os ciganos, os negros e os moradores de bairros sociais, mas também contra os direitos conquistados pelas mulheres e comunidade LGBTQ+, que não podem ser acantonados como “lutas por identidades”.

É importante invocar a defesa do Estado de direito e do regime representativo, recusar o judicialismo e a capitulação da comunicação social ao sensacionalismo, bem sabemos que não estão escritos na pedra. Concordo que residem aí os limites da normalização da extrema-direita – não podemos ignorar a sua presença nem tornar o seu conteúdo aceitável. Mas quem é que tapa a ferida por onde entra o vírus?

Quem é que tapa a ferida por onde entra o vírus?

A.S.S. não é o único do seu campo político a tentar teorizar que o centrismo (cada vez mais em perda) é a barreira contra o fascismo, sobretudo porque isso lhes permite não assumir o risco de defender o constitucionalismo moderno por inteiro: nessa lista da farmácia, onde fica o Estado social? Enquanto A.S.S. pensa em remédios, preferia que estivéssemos a falar da vacina.

Artigo publicado no jornal “Público” a 13 de fevereiro de 2023

Joana Mortágua
Sobre o/a autor(a)

Joana Mortágua

Deputada e dirigente do Bloco de Esquerda, licenciada em relações internacionais.
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