Para os portugueses, a independência de Timor foi, no virar do século, uma confirmação do 25 de Abril, da sua radicalidade e da sua generosidade. Para os timorenses, parecia ser o fim de um pesadelo aterrador. Nos antípodas, a ponte entre as ruas de Lisboa e Porto e as de Díli criou uma lenda.
Essa lenda tinha algumas condições para vir a ser realidade. Um movimento de libertação que juntava os melhores, uma grande unanimidade no referendo pró-independência, o apoio internacional tão unânime quanto antes tinha sido a cumplicidade com a ocupação indonésia – a China, a URSS e os Estados Unidos ao lado dos generais facínoras de Jacarta – e o apoio da ONU, a descoberta de petróleo nos mares nacionais, parecia haver tudo para que o novo regime conseguisse criar uma democracia e garantir a independência.
A lenda parecia ter condições. No entanto, está a morrer.
Sete anos depois
Sete anos depois da decisão da independência, os tumultos em Díli provocaram a fuga massiva da população para as aldeias das montanhas. O regime desagregou-se e um golpe palaciano, dirigido pelo Presidente e por um dos ministros e homem de confiança da Austrália, Ramos Horta, conseguiu o primeiro objectivo, a demissão do primeiro-ministro Mari Alkatiri. Agora, Ramos Horta, o ministro que todos os dias desmentia o seu governo e que agora dirige o governo de gestão de que aliás se tinha demitido estrondosamente, tem um objectivo principal: condicionar a preparação das próximas eleições presidenciais e legislativas.
Este não é o primeiro confronto que abala o regime, mas é certamente o mais grave. A primeira ofensiva tinha sido dirigida no ano passado pela Igreja Católica, recusando o ensino laico. A Fretilin e os seu governo tinham resistido, demonstrado um grande apoio popular, e vencido.
No entanto, perante a mais recente ofensiva concertada de todas as forças conservadoras, Alkatiri ficou paralizado e a resposta da Fretilin, mobilizando os seus apoiantes para a maior manifestação destas semanas, foi tardia. É evidente que Alkatiri escolheu o caminho do não confronto com o Presidente Xanana, que desprezou a Constituição para impor a sua vontade. Alkatiri tinha pedido a presença da GNR num esforço desesperado para equilibrar o balanço das alianças, mas logo a Austrália exigiu o comando operacional sobre todas as tropas estrangeiras, e é o que de facto conseguiu dada a sua superioridade no terreno.
Olhando para trás, verifica-se que a ofensiva conservadora foi desencadeada imediatamente após a decisão do governo Alkatiri sobre o concurso aos novos poços de petróleo, que excluiu a Austrália. Três dias depois, os tumultos incendiavam Díli e as tropas australianas já tinham desembarcado em Timor. Alkatiri passou a ser acusado na TV australiana (vd. Dossier neste portal) de ser “terrorista” e “ladrão” – a Austrália e a Casa Branca não esquecem quem não apoiou a guerra do Iraque, e não esquecem quem os apoiou como Ramos Horta. O governo australiano encarregou-se de deixar muito claro ao que vinha e o que quer.
O que falhou?
Durante estes anos, Timor recebeu muitos apoios. Nenhum deles respondia ao essencial. Era preciso apoio económico para viabilizar o ensino qualificado e para o desenvolvimento. Era preciso criar emprego para a maioria da população e desenvolver uma economia viável. Era preciso autonomia face aos poderosos poderes regionais – Indonésia e sobretudo Austrália. Tudo o que era preciso falhou. E os únicos progressos foram conseguidos pelo governo Alkatiri, ao impor a renegociação do acordo petrolífero e ao resistir à proposta de criação de uma base militar australiana no seu território.
Por isso, Timor tem agora a alternativa dramática entre resistir e garantir a sua independência ou transformar-se num protectorado australiano. Já não há lugar para uma lenda entusiasmante acerca de um país onde tudo poderia correr bem.
Depois da lenda, a realidade dos campos que se definiram nas últimas semanas não deixa dúvidas: a maioria da população está onde não estão os projectos dos vencedores. Se a democracia perder, é a independência que se perde.
