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Facilitismo e exigência, há lugar para os exames?
A intenção do Ministério da Educação de acabar com os exames nacionais, como forma de acesso ao ensino superior, despertou polémica. Parece que um dos principais opositores desta intenção do Ministério da Educação é o Ministério do Ensino Superior. Mais do que pontos de vista diferentes, estamos perante uma falta de coordenação do governo. É algo interessante, mas passageiro, os próprios exames são um tema muito melhor. Aliás, parece que entre o mais vanguardista Ministro da Educação e a mais conservadora Ministra do Ensino Superior houve um consenso, não propriamente a meio caminho, mas apenas descendo um pouco o peso dos exames nacionais. Curioso é ter sido Marcelo Rebelo de Sousa a fazer o anúncio do consenso, não seria a primeira vez que, nos bastidores, influencia as questões de educação num sentido beato e meritocrático. A questão não ficará por aqui, é certo.
Sou da geração que fez greve contra os exames, na altura achávamos que os exames eram um péssimo método de avaliação, mas, em contrapartida, um ótimo meio de seleção social. Hoje sei mais, e continuo a achar o mesmo. Duas horas para avaliar um percurso escolar é, no mínimo, limitado. É também sinal de uma enorme desconfiança em relação a professores e a todo o sistema educativo.
O velho exame da 4ª classe foi, até ao fim dos anos 60 um marco na vida das crianças portuguesas, para muitos terminava aí a escolaridade. Os que podiam continuam tinham pela sua frente um novo exame, eram admitidos ao liceu, ou à escola técnica. Selecionavam-se os melhores, leia-se a classe média. O ensino era assumidamente classista e, não por acaso, os exames da 4ª classe, voltaram pela mão de um dos campeões da luta contra o facilitismo, mas seguramente também campeão de passagens administrativas, Nuno Crato. Nos atuais 6º e 9º ano os exames (com muitos nomes) têm passado por vários modelos.
A entrada na Universidade condicionada pela avaliação de secundário já vem de há 45 anos, primeiro com o Propedêutico, depois com o 12º ano, e, por ser muito competitiva, acaba por contaminar todo o ensino secundário. Será que garante a entrada dos “melhores” para o ensino superior? Não é evidente, o ter as melhores avaliações na combinação entre exames e nota interna à disciplina X ou Y não é garantia de que se seja mais apropriado para o curso Z. As queixas dos professores do ensino superior e as taxas de abandono nos primeiros anos provam-no. Porém, parece que a Ministra do Ensino Superior prescindiu desta tarefa, perdendo-se uma oportunidade de aumentar a autonomia das instituições do ensino superior. Pelo contrário, passar a haver duas disciplinas à escolha, será uma forma de aumentar as notas, mas não de garantir a adequação ao percurso.
As universidades devem escolher entre os alunos que se candidatam a elas. Devem escolher os alunos e escolher o método para o fazer. As universidades sabem que perfil pretendem nos alunos a admitir. Talvez seja novo em Portugal, mas há uma enorme experiência internacional sobre o assunto. Estudantes portugueses que se candidataram a universidades estrangeiras passaram por isso. As universidades teriam um trabalho suplementar, mas garantiam uma melhor escolha de alunos. O secundário estaria mais livre de ser uma espécie de pista para a corrida de entrada na universidade. Perdiam escolas privadas que vivem do negócio de inflacionar notas de secundário (negócio conhecido, mas a que ninguém faz frente). É algo que beneficia os ricos, caso contrário era rapidamente resolvido, nem que fosse aos gritos de “vergonha”.
Contra a abolição de exames alega-se o facilitismo e a pressão pelo sucesso, como se os exames não pudessem ser manipulados. Devo dizer que a maior pressão pelo sucesso que alguma vez senti foi a minha própria e acredito que isso seja geral. Olhando para as estatísticas, pode-se notar uma diminuição continuada do insucesso em Portugal. Acredito que, mesmo com currículos desatualizados, com falta de meios e com professores exaustos, as escolas estejam a trabalhar melhor. Isso não se deve a uma conceção produtivista que vem de há uns anos, pelo contrário, vem da resistência a esse modelo. Sei que os que hoje estão na escola são filhos dos que já tiveram uma maior escolarização e isso, segundo todos os estudos, ajuda muito.
Fala-se em facilitismo e diz-se que há uma pressão para passar todos os alunos, não creio que seja a isso que se deve o sucesso. Chumbar/reprovar/reter (não tenhamos medo das palavras) pode ser uma forma de facilitismo, não tanto do professor/a que o faz, mas do próprio sistema que não tem outra forma de lidar com o insucesso. Um aluno é reprovado por ter vários níveis negativos quando, provavelmente, precisaria de um real programa de recuperação que não existe. Isso sim, é facilitismo.
Facilitismo também é saber que há taxas de insucesso elevadíssimas em escolas de meios mais pobres e nada se fazer, como se isso fosse o natural. Eu sei que existe um projeto para essas escolas, mas, a verdade é ao fim de muitos anos, o problema não acaba. Não gosto da expressão “elevador social”, é como se nos contentássemos com o facto de alguns pobres passarem a ser menos pobres, mas nestas circunstâncias funciona ao contrário. A escola como perpetuação da desigualdade e segregação.
O facilitismo também têm sido as pequenas reformas que vão retirando coerência a um sistema que já não era coerente. Facilitismo é o retirar horas letivas de disciplinas mantendo os mesmos programas esperando que as escolas e os professores resolvam. Facilitismo é manter um sistema antidemocrático de funcionamento do sistema e esperar formar cidadãos. A gestão das escolas é só um elo da cadeia, a falta de autonomia, a rigidez curricular pesam de forma muito mais estruturante.
Facilitismo foi o argumento dominante de Nuno Crato, numa tentativa de regresso a um sistema educativo seletivo e elitista, anterior às reformas dos anos 60. Separação do ensino “vocacional” desde os 10 anos, estatuto do aluno semipolicial e, fomento do insucesso, por via da concessão de créditos para a aproximação aos resultados dos exames nacionais. Isto não se estendia ao ensino privado cuja inflação de notas ficava assim beneficiada. Lurdes Rodrigues tinha criado o caldo de cultura em que estas teorias se desenvolviam. A necessidade de “ganhar a opinião pública” contra os professores, em que via todos os males do sistema educativo, gerou esta reação conservadora. Apesar da retórica, Crato, em relação aos professores seguiu uma política semelhante, desemprego, precariedade e desvalorização. Outro elo desta política foi a “implosão do Ministério da Educação”, em que se viam todos os males, que se limitou ao fim das Direções Regionais de Educação, com fortalecimento de outras estruturas. Curiosamente o PS, que há pouco atacou esta política (Porfírio Silva na AR), manteve todas as implosões do tempo de Crato.
O sistema educativo português é dos que mais reprova alunos, em muitos a reprovação nem existe. Não é na aprovação artificial que se manifesta esse facilitismo. Também não é pela ausência de exames, os exames podem aumentar a seletividade, mas fazem-no de forma irracional. O sistema educativo português é um dos em que os vários intervenientes, nomeadamente os alunos têm menos autonomia, sendo, tendencialmente recetores passivos do conhecimento.
Mais uma vez anunciou-se uma reforma da forma de acesso ao ensino superior, sem a mínima discussão na sociedade, sem a mínima participação dos intervenientes ou mesmo das estruturas do implodido Ministério da Educação. Mas, não tenhamos ilusões, se agora não mudou nada, também não desapareceu a inevitabilidade de uma nova reforma(zinha) nos próximos anos.
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