A fábrica de perceções

porBruno Maia

28 de dezembro 2024 - 12:30
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O Governo quer com uma alteração legislativa ao Serviço Nacional de Saúde deixar os migrantes em situação irregular sem cuidados de saúde, que pode vir a ter 3 tipos de consequências: o agravamento das urgências, os perigos de saúde pública e a abertura da caixa de pandora!

O programa do Chega governa o país! Não foi preciso passar um ano para que as famosas “linhas vermelhas”, os inquestionáveis “Não é não” se esboroassem. Pressionados pelas sondagens e agências de comunicação, PSD e CDS passaram a jogar no terreno da extrema-direita, à disputa de votos. E o frontispício dessa disputa são, é claro, os imigrantes não brancos. Já se falou muito das “perceções”, nomeadamente da perceção de insegurança, e do risco de se desenharem políticas com base em sentimentos, ao avesso dos dados e da realidade. Mas é preciso dizer também que as perceções não existem no ar, para quem as apanhar. Essas perceções são fabricadas. E neste caso, foram fabricadas, com muito sucesso, pela extrema-direita e amplificadas pela comunicação social. Contra todos os dados da realidade, os factos mil vezes apresentados e a própria experiência individual de cada um nós, prevaleceu o espetáculo da gritaria, do insulto, que o bufão Ventura e amigos fazem constantemente nas redes sociais e a comunicação social amplia. Prevaleceram também os sentimentos mais básicos de medo e ressentimento, que degeneram em racismo e xenofobia em dois tempos. E enquanto nos tentam distrair neste lodaçal de “soundbytes” de tasca, esperam que nos esqueçamos de lutar por acesso a habitação digna, por melhores salários, por mais professores.

Todo este caldo de emoções básicas, o qual não é de forma nenhuma alheio aos baixos salários, ao preço impossível da habitação, culminou numa alteração legal, sobre o Serviço Nacional de Saúde, muito perigosa. Uma alteração legislativa que pretende deixar os migrantes em situação irregular sem cuidados de saúde, que pode vir a ter 3 tipos de consequências: o agravamento das urgências, os perigos de saúde pública e a abertura da caixa de pandora!

De acordo com o relatório da Inspeção Geral das Atividades em Saúde, em 2023, houve apenas 43 mil episódios de urgência de pessoas sem cobertura de saúde. Num país com 6 milhões de episódios, isto corresponde a 0,7%. Praticamente nada. E destes não sabemos quantos são migrantes não regularizados e quantos são turistas sem seguro de saúde – tivemos 400 mil migrantes por regularizar e 26 milhões de turistas no ano passado. Sobre os restantes, nada sabemos. Ou seja, olhando para os números disponíveis, o “peso” dos migrantes é, na pior das hipóteses, negligenciável. É natural que assim seja, a população migrante é, na sua maioria, jovem e saudável.

O governo garante que não comprometerá o atendimento destas pessoas em serviço de urgência, que a proibição será só na atividade programada. Esquece-se que é na atividade programada que se tratam as doenças crónicas e que estas, quando não são tratadas, descompensam em doença aguda, que por sua vez é tratada... na urgência. Portanto, a medida vai agravar o congestionamento nas urgências!

Se estas pessoas não vão ter acesso a um médico de família, seguramente não terão acesso a medicina preventiva, ou seja, vacinas, programas de vigilância de gravidezes, entre outras coisas. Só que estas pessoas, sobretudo estas grávidas e estas crianças, circulam nas nossas cidades e aldeias e convivem connosco. Vão, por exemplo, à escola onde estão os nossos filhos e netos. A pergunta que importa fazer é: quererá alguém que na escola do seu filho estejam meninos e meninas não vacinados para a difteria e a tosse convulsa?

A terceira consequência é a abertura da caixa de pandora! Qual? A de, pela primeira vez na sua história, introduzir no Serviço Nacional de Saúde a possibilidade de negar tratamento a alguém por causa da sua nacionalidade, estatuto legal, ou condição económica. Reparem, no SNS tratamos criminosos condenados por crimes hediondos, exatamente da mesma forma que tratamos qualquer outra pessoa. E o que o governo pretende fazer é inaugurar uma nova fase do SNS, em que o direito à saúde não é para todos. Onde para esta espiral?

Há um problema adicional. É que esta alteração legislativa colide com todos os códigos deontológicos das várias classes profissionais que sustentam o SNS. Tomemos os médicos como exemplo, cujo código deontológico, afirma que “O médico, no exercício da sua profissão, deve e na medida que tal não conflitue com o interesse do seu doente, proteger a sociedade”; que “O médico deve prestar a sua atividade profissional sem qualquer forma de discriminação”; que “Em caso algum o médico pode ser subordinado à orientação técnica e deontológica de estranhos à profissão médica no exercício das funções clínicas”; que o médico só deve tomar decisões ditadas pela ciência e pela sua consciência.”; ou que “O médico deve exercer a sua profissão em condições que não prejudiquem a qualidade dos seus serviços e a especificidade da sua ação, não aceitando situações de interferência externa que lhe cerceiem a liberdade de fazer juízos clínicos e éticos e de atuar em conformidade com as leges artis.” Tudo incompatível com esta lei. O médico não pode e não vai recusar tratamento (ou “não referenciar” para tratamento, que é a mesma coisa) a ninguém, independentemente do estatuto legal da pessoa. É por isso que mais de um milhar de profissionais de saúde assinaram já uma carta conjunta, a informar o governo que vão desobedecer a esta lei, para poderem preservar a sua ética e código deontológico. E fazem bem!

Sabemos de onde vem esta lei: da disputa de votos à direita! Só que o PSD e o CDS escolheram disputar esses votos, copiando o programa do Chega, em vez de o combater! Vimos isto a acontecer noutros países europeus e também ao longo da história: a direita “tradicional” facilmente capitula os seus princípios à extrema-direita, sempre com o mesmo resultado: no final ganha a extrema-direita. É assim, ou foi assim, em Itália, nos EUA, no Brasil, na Hungria, na Polónia, na Índia, em Israel, na Áustria. Será assim em França, na Holanda e pelos visto, agora, também em Portugal!

Bruno Maia
Sobre o/a autor(a)

Bruno Maia

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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