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A extrema-direita ontem e hoje

A crise institucional está a dar lugar, nalguns países, a regimes bonapartistas que, no passado, foram a antecâmara dos fascistas, e que hoje podem abrir a porta a outras formas de autoritarismo.

O surgimento de movimentos de extrema-direita um pouco por todo o mundo mostra um fenómeno persistente nas sociedades contemporâneas. Apesar da diversidade, têm a caraterística comum de incitarem ao autoritarismo, tal como os movimentos fascistas das décadas de 20 e 30. Isto tem conduzido muitos pensadores ora a falar indistintamente em fascismo sempre que se deparam com partidos ou líderes de pendor autoritário, ora a afastarem a ameaça fascista nos dias de hoje dadas as suas diferenças em relação ao século XX. Será este o melhor método para abordar o problema?

Alguém escreveu, a propósito da repetição de circunstâncias históricas, que os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem arbitrariamente, nas condições escolhidas por eles, mas nas condições diretamente herdadas do passado. A pulsão autoritária, presente em franjas da sociedade, pode ganhar mais ou menos adeptos conforme as circunstâncias são mais ou menos favoráveis, mas não pode forjar aquelas mesmas circunstâncias. Daqui que a verdadeira questão possa ser, quais as semelhanças e diferenças entre as décadas de 20 e 30 e o período que vivemos?

O que há de comum é a instabilidade e a possibilidade de viragens bruscas na situação económica e política. Elas resultam da dificuldade em sustentar o crescimento sem a ameaça de recessões sucessivas (na sequência da crise de 2007/9, tal como após a crise de 1929), das políticas protecionistas que acompanham os conflitos inter imperialistas (hoje entre Estados Unidos, China e União Europeia), da degradação das condições de vida dos trabalhadores, do desmembramento de setores das classes médias e da erosão das democracias parlamentares que reflete descontentamento e favorece a ascensão da extrema-direita.

A grande diferença reside na natureza do período quanto à luta de classes. Hoje não há equivalente das vagas revolucionárias da Rússia de 1917, da Alemanha de 1918 ou de 1930, da Hungria de 1919, da Itália de 1920, da França ou da Espanha de 1936. A queda do Muro de Berlim consumou um refluxo prolongado do movimento dos trabalhadores e das suas organizações. E, hoje, também não existe o desemprego massivo que se seguiu à Grande Depressão de 1929. Ele foi substituído pelo emprego precário e pelo congelamento dos salários reais.

Quanto às classes médias dos atuais países desenvolvidos, entre as duas guerras mundiais a população rural e o campesinato pobre representavam parcelas significativas da população, hoje são sobretudo novas classes médias urbanas. Estas camadas, desprotegidas face às crises e a um Estado Social mais concentrado apenas no apoio aos mais pobres de entre os pobres, pagam impostos que financiam aquela política assistencial, que beneficia as grandes empresas na manutenção dos salários congelados. A extrema-direita tira partido desta fratura social que ajuda a construir o descontentamento.

A recente pressão da imigração do Norte de África e do Médio Oriente torna as sociedades europeias menos homogéneas. Mesmo em países de imigrantes como os Estados Unidos, as diferentes vagas de imigração geraram resistências e conflitos, tratando-se sobretudo de populações de origem católica. Na Europa, esta nova vaga de imigração traz muçulmanos e outras culturas mais distantes das tradições do Velho Continente, o que adicionado à competição no mercado de trabalho e no acesso às prestações sociais cria tensões que a extrema-direita aproveita. Há quem veja nesta tensão o substituto da perseguição dos fascistas aos judeus no século passado.

O fascismo foi um instrumento desesperado para esmagar todas as formas de organização popular autónoma e de destruição radical das liberdades democráticas perante a ameaça da tomada do poder pelos trabalhadores. Neste sentido, a solução fascista parece não estar na ordem do dia. No entanto, se alguma vez ela se impusesse seria sempre como resultado de um processo no decorrer do qual os partidos tradicionais perderiam o controlo da situação e acabariam por ceder espaço a movimentos sociais radicalizados de extrema-direita que recorreriam a métodos de combate extra parlamentar.

A crise institucional está a dar lugar, nalguns países, a regimes bonapartistas que, no passado, foram a antecâmara dos fascistas, e que hoje podem abrir a porta a outras formas de autoritarismo. Veremos se as diferenças entre estes dois períodos são suficientemente fortes para se sobreporem às semelhanças. Ou se a esquerda impõe as medidas que podem esconjurar aquelas ameaças: alterações profundas na legislação laboral, universalidade de acesso ao Estado Social, aumento do investimento público, controlo público da banca, energia e comunicações, resposta à emergência climática, reestruturação da dívida pública.

Artigo publicado no “Público” a 10 de setembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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