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Exportar a regionalização

A forma como o poder político trata os emigrantes não é muito diferente daquela com que trata dos legítimos interesses do Portugal real que desconhece.

O Estado português que, ao longo de sucessivas eleições, tem tratado o voto dos emigrantes com os pés, foi apanhado descalço com a inesperada alteração ao ciclo legislativo decorrente das eleições legislativas antecipadas.

Não que fosse previsível especial preocupação de PS e PSD em criar condições para que, no acto eleitoral que se apontava para 2023, algo de substancial mudasse no sentido de introduzir mecanismos que permitissem aos emigrantes portugueses condições simples, práticas e seguras de exercerem o seu direito de voto.

O desincentivo ao voto é gritante. Mesmo com mais um inenarrável imbróglio que o Tribunal Constitucional tenta (e bem, dentro do possível) minimizar, o mal está feito. Quando, nestas eleições, se registou um forte aumento da participação dos emigrantes - se compararmos os números com as legislativas de 2019 - muito fruto do voto por correspondência, a repetição da votação no círculo da Europa não deixa apenas o país em suspenso. Os emigrantes, convidados a renovar votos a 27 de Fevereiro apenas por voto presencial, sem direito a voto postal, ficarão maioritariamente em casa. E nunca semelhante abstenção foi tão legítima.

Deitar ao lixo 157 mil votos, 81% dos votos do círculo da Europa (61% do total de votos enviados pelos emigrantes) é obra. Independentemente da desnecessidade ou anacronismo, a exigência da cópia do cartão de cidadão do eleitor é algo que não compete aos partidos fintar. A revisão da lei eleitoral é tão urgente como acabar de vez com a possibilidade de um partido dizer algo e o seu contrário, como se a responsabilidade política fosse a enterrar junto com a sensatez. Os protestos do PSD pelo facto da maioria das mesas terem validado votos que não vinham acompanhados da devida identificação mostra como o respeito pela lei pode ser contraditório com o respeito pelas decisões que o próprio PSD tomou e pelas quais se desresponsabiliza num abrir e fechar de urnas.

O centralismo cuida das comunidades portuguesas no estrangeiro com o mesmo desrespeito com que trata as diferentes realidades regionais dentro do país. Desinteresse e desconhecimento. Exportar a regionalização, pelo contraste e absurdo. A regionalização, medo indómito de boa parte da classe política portuguesa, nada convicta em distribuir equidade e equilíbrio num pequeno país tremendamente desigual, devia ser exportada a título experimental. A forma como o poder político trata os emigrantes não é muito diferente daquela com que trata dos legítimos interesses do Portugal real que desconhece. Mais do mesmo. A distância da realidade, esse indispensável condimento utilizado pelo poder político para transformar injustiças em equívocos, desresponsabilizando-se das suas decisões que fundamentam desgraças.

Artigo publicado no “Jornal de Notícias” a 18 de fevereiro de 2022

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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