Ética, para que te quero?

porLuís Fazenda

07 de junho 2023 - 17:03
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Foi por conveniência partidária que o PS nunca criticou Sócrates ou para não perturbar a continuidade do grupo político-social que se movimenta entre cargos e empresas?

Todos os partidos têm naturalmente problemas éticos. É o que acontece em quaisquer organizações sociais e, por maioria de razão, no interior dos partidos políticos. A questão que se coloca, perante esse facto, é a de saber se esses partidos têm referências éticas a que fazer apelo. Referências éticas que lhes permitam corrigir desvios de elementos seus, porventura excluí-los, e criar uma cultura de serviço público, na qual se revejam os seus militantes e os seus eleitores. Exatamente por isso, temos de qualificar essas referências. Pretende-se probidade, transparência na função pública, administração isenta e completa na defesa do interesse público.

Estas questões estão há muito em aberto e agravaram-se com o caso Sócrates.

Podemos listar alguns “monstrinhos” que assaltam as democracias: promiscuidade entre política e negócios, portas giratórias entre cargos públicos e altos cargos privados, camuflagem de decisões públicas, amiguismo no recrutamento de chefias na administração pública, exércitos de assessores em redor dos responsáveis de governos e de autarquias importantes, banalização da contratação pública por ajuste direto, externalização da assessoria jurídica e negocial, contratada a camaradas e a camaradas de toda a gente.

Como é bem compreensível, décadas de coabitação com esta cultura e seus beneficiários teriam de apodrecer partidos que se intitulam de "poder". Apodrecem porque parte dos seus elementos, com responsabilidades, é estruturalmente carreirista e gestora de carteiras de clientes.

Décadas de coabitação com esta cultura e seus beneficiários teriam de apodrecer partidos que se intitulam de 'poder'. Apodrecem porque parte dos seus elementos, com responsabilidades, é estruturalmente carreirista e gestora de carteiras de clientes

A ideia dominante, constantemente veiculada pela comunicação social, de que sem circulação entre a política e os negócios a sociedade civil estaria impedida de participar na representação política tem-se revelado um maná para o enriquecimento injustificado de políticos do "centrão". Essa apologia da presença de interesses particulares nos órgãos de decisão política vai a par da estigmatização de funcionários públicos e de outros trabalhadores como “funcionários”, uma espécie de dependentes inatos por comparação com as “vocações liberais”. É o que se tem visto…

Há quantos anos não se reclamam travões para a promiscuidade entre negócios e política? Há quantos anos falta um rastreio rigoroso dos bens efetivos de responsáveis públicos? O que se tem feito nesta área é pouco mais do que incipiente, tão incipiente como os meios de combate a vantagens indevidas.

A insuportável perceção dessa realidade levou à proliferação de códigos de conduta no Estado, com pouco efeito. Até caíram anedoticamente uns governantes, por terem aceitado viagens pagas pela Galp para irem ver a seleção nacional de futebol a jogar no estrangeiro, aquando de um estrépito nacionalista da família Amorim.

Em muitas situações, a "carreira" substitui objetivos programáticos ou compromissos eleitorais, ou mesmo o simples critério de preservação dos bens comuns. O zénite disto, queira-se ou não, foi o caso Sócrates.

Deixando de lado o incerto desfecho judicial, é impossível não perceber que Sócrates foi parte dessa nebulosa sobre a coisa pública. Chegados aqui, impõe-se a pergunta: foi por conveniência partidária que o PS nunca criticou Sócrates ou para não perturbar a continuidade do grupo político-social que se movimenta entre cargos e empresas? À política o que é da política e à justiça o que é da justiça, sem politizações, nem judicializações. Mas esse princípio correto não é incompatível com a expressão de um juízo ético, necessariamente geral, sobre aquilo que todo o português sabe, mesmo os que preferem o PS.

Onde não há sanção política, afrouxam os critérios éticos

Sócrates faltou aos deveres do Estado e isso é inadmissível num antigo primeiro-ministro. Dirão que isso não tem consequências diretas na vida do Partido Socialista. E que Sócrates é um ex-militante. Grande engano. Onde não há sanção política, afrouxam os critérios éticos. Dito de outra maneira: muitos pensam que as coisas lhe correram mal por evitáveis erros no percurso e não devido ao negocismo implícito. António Costa não quis fazer doutrina e hoje o crivo de rigor, responsabilidade, legalidade, tem muitos atalhos apesar da proclamação das virtudes públicas. Até na fratura exposta de manter até à última no seu gabinete, perante o repúdio geral, um ex-autarca do Alto Minho metido em negócios extravagantes e lesivos do erário. Que significará “adjunto do primeiro-ministro”?

António Costa não quis fazer doutrina e hoje o crivo de rigor, responsabilidade, legalidade, tem muitos atalhos, apesar da proclamação das virtudes públicas

O PSD lavra na mesma cultura e o cavaquismo foi um trampolim para a superfraude laranja do BPN/SLN, ou o autocarro de muitos autarcas acusados de luvas e nepotismo. Ainda por estes dias tivemos mais casos transitados em julgado.

Quem quer que se preocupe com estes fenómenos – mesmo que recuse a instrumentalização populista – é imediatamente apodado de inquisitorial, de moralista, de justicialista, entre outros epítetos. Percebe-se a reação dos meios instalados. O que não se percebe, de modo algum, é a recente missão de combate à extrema-direita proclamada ao mesmo tempo que se fecha os olhos ao enriquecimento privado, se ele vier de favor legal ou ilegal do próprio poder político. Aí está o despautério da TAP, descoberto acidentalmente no compadrio com fortunas individualizadas de empresários e gestores. Ninguém quer uma espécie de puritanismo político, mas exige-se o simples uso dos critérios de Estado decorrentes dos valores constitucionais.

Em tempos, uma figura da República e da Democracia, Pedro Arsénio Nunes, disse-me que não havia um manual para expor os “janotas" que se apropriavam de coisa pública e que, para além da justiça, apenas a política pode mudar culturas. A proliferação de janotas é proporcional à pretensa neutralidade ética dos governantes e da hierarquia dos sentados. Falta a política. A ética republicana não se esgota na legalidade ou no incerto e sempre tardio juízo dos tribunais. Precisa de referências que, por desuso, se afundam no pântano.

Artigo publicado no jornal “Público” a 6 de junho de 2023

Sobre o/a autor(a)

Luís Fazenda

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.
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