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As estrelas também se apagam

Um qualquer aluno saído de uma escola de jornalismo, a iniciar carreira, terá (infelizmente) de fazer algumas cedências no actual quadro e enquadramento laboral, mas alguém com um passado deste, não devia, nem podia, ceder ao momento.

Ciclicamente, no verão, temos menos matérias e histórias para contar. Baptizou-se esta época como a "silly season". Patetices, portanto. Mas, de quando em vez, no meio de um "não-assunto", há algo para além do ângulo aparentemente óbvio. Estas linhas são para "descascar" a saída da jornalista Judite Sousa da CNN.

Antes de mais, foi tornado público pela própria, ou relatado por terceiros, o que facilita a pesquisa mas não invalida que se procurem pistas diferentes da versão oficial. A questão é que a jornalista, alegadamente, não tinha um contrato de trabalho e passava recibos verdes. Só por si não é novo este expediente - infelizmente, os profissionais do jornalismo (e muitos outros) são vítimas, amiúde, desta forma de exploração: precários, sem protecção social e, quase sempre, mal pagos. Pior, a ser verdade, é serem deslocados em trabalho e não se garantir a mínima e justa compensação e acompanhamento do seu directo empregador. Como é sabido, a jornalista em causa esteve em serviço a cobrir a guerra na Ucrânia, o que não se sabia é que teve de recorrer financeiramente ao jovem colega que a acompanhava nas reportagens. Aliás, se esteve em trabalho - e naquele trabalho em particular - sem seguro para qualquer fatalidade, além de inacreditável raia o limite da ilegalidade. Se foi mesmo assim, isto está ao nível do grotesco e do absurdo.

Felizmente têm aparecido plataformas independentes e projectos mais ou menos sólidos com uma visão estritamente informativa e de investigação, com redações muito valiosas e compostas por gente com muita qualidade e vontade de remar contra a maré, mas a verdade é que os magnatas e grupos económicos muitos duvidosos tem assumido posições importantes de domínio

Os relatos desta "estrela" são paradigmáticos do estado em que está o jornalismo, genericamente. Felizmente surgiram plataformas independentes - procurar a razão do porquê seria todo um outro tema - e projectos mais ou menos sólidos com uma visão estritamente informativa e de investigação, com redações muito valiosas e compostas por gente com muita qualidade e vontade de remar contra a maré, mas a verdade é que os magnatas e grupos económicos muitos duvidosos têm assumido posições importantes de domínio. O mais visível é Marco Galinha, dono do grupo Bel, presidente executivo da GMG e acionista da Lusa, que após a compra da Global Media (Jornal de Notícias, O Jogo, TSF, Dinheiro Vivo, entre outros), fez e continua a fazer uma verdadeira purga interna e a destruir, dizem os próprios jornalistas, anos de investimento, credibilidade e de confiança com os leitores/ouvintes, e que usa o seu poder e influência para perseguir quem se opõe aos seus interesses. Não é opinião, é factual e público.

Judite Sousa é uma estrela, fez uma carreira impressionante e, sem querer discutir o seu percurso e opções, é uma profissional. Deve ser respeitada como um qualquer seu par. No entanto, a vida é feita de escolhas e aquilo que se sabe é que a saída da TVI foi muito bem negociada. O resto é história: entrou Mário Ferreira no capital da TVI, depois apareceu um clone da CNN em Portugal e foi ela a escolhida para ser a primeira cara da estação quando foi para o ar. Sabe-se que isso surgiu de forma natural, aparentemente, que aceitou o convite logo no momento em que conheceu o empresário. Terá sido uma opção impulsiva? Estava à procura para ser, de novo, figura de proa?

 

Mas o que é que se espera do "astronauta"? Já em 2017 eram relatadas cenas lamentáveis nos barcos da Douro Azul. Cito: "salários baixos; contratos maioritariamente temporários, quase sempre de três ou de seis meses; sazonalidade; jornadas laborais de 60 horas semanais, contínuas; folgas em plano b; dormidas a bordo em espaços exíguos, sem privacidade; refeições feitas de restos". No contraditório destas afirmações, as empresas nunca assumiram as acusações, pelo contrário, repudiaram veementemente que tais práticas se passassem debaixo dos seus narizes. A verdade é que estas denúncias, que foram feitas por trabalhadores e ex-trabalhadores, à época, quase todas anónimas por receio de represálias, nunca terão sido investigadas pelo Ministério Público. Ao que se sabe hoje, com todas as "operações de charme", permitam-me chamar assim, do empresário com os corredores do poder rosa, alguém se espanta?

Algo que me faz espécie neste processo é que se aceite um trabalho, ainda por cima sendo alguém com "nome na praça", sem ter um vínculo com a entidade patronal. Um qualquer aluno saído de uma escola de jornalismo, a iniciar carreira, terá (infelizmente) de fazer algumas cedências no actual quadro e enquadramento laboral, mas alguém com o passado de JS, não devia, nem podia, ter tomado esta decisão. No mínimo, pactuou com as más práticas que conhecerá e noticiou, vezes sem conta. Ou então, quiçá, foi um expediente para não perder o que tinha conseguido na saída da TVI e acumular um rendimento extra (que, alegadamente, nem lhe foi pago). Houve gula, aparentemente ter-lhe-ã saído o tiro pela culatra e ficou magoada. No entanto, todo o "número" roça o patético: denuncia o mal-estar mas, à posteriori, faz elogios ao ex-patrão? Isto não cola!

Se for tudo verdade e se estiver para lá do mero espectáculo de vitimização e puro mediatismo, e com a responsabilidade e exposição que tem, Judite Sousa deveria ter denunciado o caso à Autoridade para as Condições do Trabalho, contactado o Sindicato ou a Comissão de Trabalhadores (que sim, existe) ou simplesmente avançado judicialmente. Um abuso é um abuso, sejam Ferreiras ou Galinhas os prevaricadores. Mas como duvido que isso tenha acontecido e como sou alguém que faz muitas perguntas e recorrentemente tem dúvidas e assumindo que sou desconfiado por natureza, a única certeza que tenho no imediato é que foi o ovo que saiu do cu da galinha.


Ler Direito de Resposta enviado por Marco Galinha.

Sobre o/a autor(a)

Ativista laboral
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