A estratégia Boulos

porValério Arcary

07 de dezembro 2023 - 20:18
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Na cidade de São Paulo, Boulos superou a candidatura do PT em 2020. Por isso, a sua candidatura em 2024 é muito maior que uma tática eleitoral. Boulos concentra uma aposta estratégica.

Todas as flores de amanhã estão nas sementes de hoje.
Um dia vale por dois, para quem diz «Já» e não «Depois»
O caminho mais curto nem sempre é o mais a direito
Provérbios populares portugueses

1. O PT é um dos maiores partidos de esquerda do mundo. No Brasil de 2023 o lulismo é uma corrente eleitoral maior que a esquerda. A disparidade da influência do lulismo e da esquerda é desigual – maior no Nordeste do que no Sul, por exemplo – mas é nacional, e essa diferença de peso social e influência ideológica é qualitativa. A esquerda brasileira é liderada pelo PT, o PT é dirigido pela CNB (Construindo um novo Brasil), e a CNB é uma articulação de líderes, parlamentares e grupos que respondem à autoridade de Lula. A preferência pelo PT, em escala nacional, é constante desde 1999, e os últimos dados informam, de junho de 2023 que alcança 29%.1 O PSol é o segundo partido da esquerda brasileira, pontuando 3%, em 2022, o que significa, em grandes cidades, uma simpatia um pouco maior.2 Mas a métrica para avaliação da relação de forças dentro da esquerda exige um modelo com muitas outras variáveis: (a) implantação nacional, número de filiados ou simpatizantes e militância orgânica; (b) implantação nos movimentos sociais, como sindical, popular, feminista, negro, camponês, LGBT, estudantil, indígena; (c) simpatia no mundo da cultura, artes e académico, ou intelectualidade; (d) audiência nas redes sociais ou capacidade de disputa na internet; (e) representação parlamentar. Considerando todos estes elementos, o peso do PT ainda é imenso e, se considerado o fator Lula, avassalador. Esta influência decorre de muitos fatores, mas o mais importante é que as expectativas reformistas ainda prevalecem na maioria dos trabalhadores.

2. À esquerda do lulismo há três campos. Hoje a esquerda anticapitalista, num sentido amplo de organizações que defendem no programa a necessidade da revolução no Brasil, em suas variadas tradições, mas fragmentação hemorrágica, está dividida no terreno tático em três campos: (a) primeiro campo é composto pelas tendências de esquerda do PT (Democracia Socialista, Articulação de Esquerda e O Trabalho) que apoiam e ou participam do governo Lula, ainda que com posicionamentos críticos sobre os aliados da coligação, e apostam, prioritariamente na reeleição de Lula que, entretanto, terá 81 anos em 2026; (b) o segundo campo é ocupado pelas correntes que constituem o bloco maioritário do PSol e defendeu não entrar no governo, mas sustenta o governo diante da oposição de extrema-direita, tanto no Congresso Nacional, quanto nas ruas, preservando a independência para votar contra e criticar, e liberando filiados para assumir cargos em seu nome pessoal e dos movimentos sociais que representam e apostam em uma reorganização que tem Boulos como referência pública; (c) o terceiro é a parcela da esquerda radical que se posiciona como oposição de esquerda, entre as quais, as mais representativas apresentaram três candidaturas à presidência em 2022, o PSTU, o PCB e a UP, e apostam nas suas autoconstruções, sem uma liderança pública comum. A relação de forças entre os três campos é muito assimétrica. O campo do PSol é, quantitativamente, maior que o da esquerda do PT, e o terceiro campo é, qualitativamente, tão menor que os outros dois, que já está à margem da disputa que virá.

3. As esperanças reformistas não morrem sozinhas. As lições que ficaram em um século de disputas na esquerda, em escala internacional, entre as organizações reformistas e as mais radicais, se concentram em uma questão central: fora de uma situação revolucionária a maioria dos trabalhadores não rompem com as direções moderadas. Somente quando foram esgotadas todas as expectativas em soluções negociadas, o desafio da ruptura pode conquistar maioria entre os explorados. A luta revolucionária exige uma inesgotável paciência histórica. Mas o caminho para sair da marginalidade não é possível sem uma acumulação prévia que não se improvisa no calor da hora. A experiência dos governos de coligação liderados pelo PT foi interrompida pelo golpe institucional em 2016. Esta é a chave para a compreensão da resiliência do lulismo. Nenhum dos outros partidos de esquerda tem peso próprio nas massas populares. São organizações com expressão em setores de vanguarda, mesmo o PCdoB que é, incomparavelmente, a maior. A conquista de sindicatos e de mandatos pode alimentar uma perigosa ilusão de ótica. Os trabalhadores apoiam, até com alguma regularidade, a liderança de revolucionários nos seus sindicatos, porque os conhecem, pessoalmente, são honestos e combativos. Ou podem elegê-los deputados. Mas isso não autoriza a conclusão de que querem que governem. Não querem, porque temem o radicalismo. Ao contrário do que muitos, apressadamente, pensam, o apoio a Lula tem dimensão programática, mas o voto em revolucionários para a presidência de um sindicato ou para parlamentares é pessoal. Somente o PSol conquistou um pequeno espaço próprio, essencialmente, nas eleições para deputados. Mas há uma exceção, e ela foi uma façanha enorme. Na cidade de São Paulo, Boulos superou a candidatura do PT em 2020. Por isso, a sua candidatura em 2024 é muito maior que uma tática eleitoral. Boulos concentra uma aposta estratégica.

4. Três estratégias para a etapa pós-Lula. Estamos diante de um daqueles momentos raros em que uma questão central será incontornável: o que será da esquerda brasileira depois de Lula? Não haverá transição sem disputa. O fator chave deste processo será a luta de classes, que condiciona a evolução da relação social de forças, e o destino do governo Lula. Apesar da vitória eleitoral, a longa etapa defensiva de refluxo nas lutas sociais não se inverteu, o país permanece fraturado, e a extrema-direita mantém influência sobre um quarto da população, autoridade sobre a massa da burguesia, maioria nas camadas médias, e influência sobre uma parcela dos trabalhadores com contratos, sobretudo, no sudeste e sul. A aposta da esquerda do PT é defensiva, manter posições e defender a posição de liderança do PT como instrumento político de representação dos trabalhadores, disputando espaço interno, e apoiando Lula até o fim. Mas ninguém sabe se Lula poderá ou não concorrer em 2026. Se concorrer, vencendo ou não, a sucessão interna ao petismo seria adiada, assim como a reorganização da esquerda. Mas, se não concorrer, a hipótese da esquerda do PT apresentar uma candidatura contra Haddad em prévias é improvável. Mesmo que o faça, dificilmente poderá conquistar a visibilidade que Juan Grabois, através de Pátria Grande, alcançou nas primárias do peronismo em agosto recente. O mais provável seria uma candidatura Haddad com perfil e programa alinhado às posições mais moderadas no PT, assim como Sergio Massa no peronismo. Do que decorre que uma possível reorganização à esquerda dependerá, essencialmente, de uma disputa exterior ao PT, não interna. Quem se posiciona melhor nessa direção é o PSol, e a liderança de Boulos concentra esta esperança, mesmo se não vencer as eleições em São Paulo em 2024. Se, eventualmente, vencer, tudo se acelera. Já os partidos à esquerda do PSol são grupos de propaganda resignados, aparentemente, a um papel de eterna oposição testemunhal.

5. O que a história nos ensina? A última vez que se colocou a questão foi há 45 anos atrás. Entre 1978/80, no intervalo de apenas dois anos, um processo acelerado pela primeira onda de mobilizações operárias, sindicais e populares abriu uma luta política frontal na oposição. Então, a esquerda se dividiu em três campos: (a) os que defenderam até ao fim a presença da esquerda dentro do MDB, sob a liderança dos liberais, como o PCB, o PCdoB, o MR-8; (b) os que imaginavam que a crise da ditadura abriria as condições para que uma organização revolucionária conquistasse influência de massas; (c) os que compreenderam a necessidade do PT como uma mediação para disputar a liderança das massas com o MDB e Brizola contra a ditadura. O protagonismo de Lula à frente das greves do ABC abriu a possibilidade de uma reorganização que deslocou, sobretudo, o papel do PCB, que tinha sido o principal instrumento de representação da esquerda no Brasil até 1964. A questão é saber se o ciclo histórico do PT se esgotará ou não numa etapa pós-lulista.

6. Por que a estratégia Lula foi vitoriosa? Que lições deixou o processo que iniciou em 1978/80, e deu um salto de qualidade entre as Diretas de 1984, e as primeiras eleições presidenciais em 1989? Por que o PT substituiu o PCB? Por que demorou dez anos? Podemos destacar a rara combinação de cinco fatores centrais, avançando dos mais objetivos para os subjetivos: (a) o primeiro foi o impacto da crise superinflacionária crónica sobre a experiência de vida de uma nova geração de trabalhadores urbanizados, que procuraram os sindicatos para se defender, e descobriram a sua força social de choque na onda de greves; (b) o segundo foi o enfraquecimento da ditadura militar, depois de quinze anos no poder, e o deslocamento lento, mas ininterrupto, da maioria das camadas médias e do povo para a oposição, enquanto a liderança liberal-burguesa do MDB apostava no quietismo, e no calendário eleitoral da transição lenta segura do governo Figueiredo/Golbery; (c) o terceiro foi a explosão da direção do PCB com o retorno de Luís Carlos Prestes, a disputa fracional que levou ao afastamento do lendário líder histórico, e a capitulação à direção do MDB; (d) o quarto foi a união das três componentes fundamentais, ainda que com influência desigual, que apostaram no projeto de construção do PT para derrubar a ditadura e implodir o plano de transição negociada, e disputar com Tancredo Neves, Ulysses Guimarães, Franco Montoro, mas, também, Leonel Brizola a liderança da oposição: os sindicalistas metalúrgicos, bancários, professores, trabalhadores dos petróleos, entre outros; as correntes de esquerda que tinham se reorganizado na clandestinidade; e a esquerda social e popular católica; (e) o último e mais imprevisível dos fatores foi a presença, compromisso e capacidade de Lula, porque o seu papel pessoal foi insubstituível. Demorou dez anos, mas foi, paradoxalmente, rápido. Dez anos pode parecer uma eternidade na escala de uma vida, mas, na métrica da história, foi vertiginoso. A afirmação de um partido de esquerda, e de um metalúrgico na sua liderança, uma “revolução” na consciência política de uma geração, só foi possível, por muitos fatores, mas o principal foi que o PT acertou na linha: soube ser firme na luta contra a ditadura, e ser oposição aos governos Sarney, Collor, Itamar e Fernando Henrique.

7. A encruzilhada histórica. A disputa pela liderança da esquerda na etapa pós-Lula vai passar por um processo cujo ritmo é ainda imprevisível, talvez mais lento, mas inexorável. Esta luta já começou e teve cinco momentos decisivos: (a) as eleições de 2018 foram o primeiro, e a tática de apresentação da candidatura de Boulos, alicerçada na defesa da Frente Única e na identificação de Bolsonaro como o inimigo principal, permitiu despertar muito respeito, no primeiro turno, reforçado pelo engajamento leal no segundo turno, que foi fatal para Ciro Gomes; (b) o segundo foi, pela positiva, a presença do PSol na campanha Lula Livre e, pela negativa, a ausência da maioria da esquerda radical exterior ao PT; (c) o terceiro foram as eleições municipais de 2020, o desempenho extraordinário de Boulos, mas também, de Manuela D’Ávila, que se projetou como liderança feminista de projeção nacional; (d) o quarto foi a campanha Fora Bolsonaro em 2021, em que Boulos se afirmou como o orador mais popular na Paulista, e consolidou como referência nacional; (e) o quinto foram as eleições de 2022, em que o Psol, pela primeira vez, apoiou o PT desde o primeiro turno, e Boulos se elegeu deputado de esquerda com a maior votação em todo o país. São estes acertos que posicionam o PSol e Boulos como o seu porta-voz, melhor do que qualquer outro no que está por vir.

8. A estratégia Boulos. Um dos perigos que nos cercam é o divórcio entre os “génios” da política e os “doutores” da revolução. Existe uma parcela da esquerda que só tem interesse nos debates da tática, e outra que só se dedica a discussões de programa. Os primeiros estão se preparando para a disputa das candidaturas e coligações para as prefeituras, e até para vereadores, em 2024. Os segundos estão polemizando sobre a atualidade da teoria da revolução em Lenin, Trotsky, Luckácz ou Gramsci. Todos estes debates e controvérsias têm o seu lugar. Mas não deveriam estar dissociados uns dos outros, e só fazem sentido se houver clareza de estratégia. Teremos três campos, nos próximos anos, na esquerda radical: (a) os que se alinharão com a defesa do PT, independentemente, do desfecho do governo Lula, e mesmo que Haddad se consolide como seu herdeiro; (b) os que insistirão em permanecer adversários de Boulos, interna ou externamente ao PSol, na expectativa que será possível ultrapassar, simultaneamente, Lula e Boulos, pela esquerda; (c) os que defenderão que Boulos é a liderança melhor posicionada para impulsionar uma reorganização da esquerda brasileira que tenha o impulso de construir um instrumento de luta, com peso de massas, superior ao que hoje é o PT.

9. Dois “negacionismos”. Sem uma onda de ascenso não é provável uma reorganização pela esquerda bem sucedida a “frio”. Mas entre a precipitação de uma etapa pré-revolucionária, e a permanência da atual situação reacionária, há vários cenários intermediários possíveis. O Brasi não é “vulcânico”, como a Argentina, mas aqui as placas tectónicas também se movem. O argumento forte dos que ainda apostam no PT, mesmo que seja liderado por Haddad, é que o PSol é muito menor. Melhor mal organizados no PT do que desorganizados. Trata-se de um “negacionismo” conservador que expressa acomodação às pressões do gigantesco aparelho. Os que apostam na possibilidade de construção de um partido revolucionário, realmente, revolucionário, o PRRR, têm como argumento forte que o PSOL é um partido eleitoral, portanto, reformista, e Boulos não merece confiança. Trata-se de outra forma de negacionismo. O PSol é um partido sem definição estratégica, mas já provou que recebe no seu interior todos os superrevolucionários que quiserem construir, lealmente. Já a desconfiança pessoal de Boulos é um argumento despolitizado. Uma aposta política não pode repousar em cálculos de preferências subjetivas. Boulos já deu provas de integridade moral, coragem pessoal e inteligência política. A renovação da esquerda será geracional, mas, também, programática. O desafio é lutar pela mobilização de massas e ir além do neoliberalismo, E depois? Depois, como Napoleão respondeu um dia, improvisamos.

Notas:

Artigo publicado em esquerda online a 1 de novembro de 2023

1 Disponível em Datafolha: 29% se declaram muito petistas, e 25%, muito bolsonaristas. Consulta em 30 outubro 2023.

Valério Arcary
Sobre o/a autor(a)

Valério Arcary

Historiador e professor universitário em São Paulo, Brasil. Dirigente do PSOL.
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