Ainda vai por aí o rasto de lama e de desgraças das cheias, que deixaram algumas vítimas e muito estrago, sabe-se lá se o inverno ainda trará mais sustos, e já se ouvem as mesmas promessas que são vezeiras sobre os incêndios: no próximo ano isto vai ao sítio. Parece uma triste sina nacional, esta repetição tanto do desastre quanto das explicações sobre o falhanço dos remédios que estão disponíveis e foram garantidos com fanfarra e com inauguração marcada, os famosos túneis de escoamento, já que ninguém vai tirar os prédios e o asfalto do cimo das avenidas que singram sobre os rios enterrados. Para agravar o agravo, juntam-se-lhe dois álibis, nenhum deles original mas não menos cínico.
O primeiro é o da culpa do anterior autarca, que adiou as medidas de mitigação das cheias sempre inevitáveis: deveriam os canos levar a água para que não inundasse Loures e Algés, ou Campo Maior ou o Funchal mas, sabida a obra, ela foi propaganda momentânea não para ser concluída. Houve powerpoints cerimoniais, data aprazada, milhões calculados, era a maior obra do século e o século esqueceu-se dela, como se poderia adivinhar. Cada autarca deixou para o outro, como lhe tinham deixado a obra para o seu turno. Por isso, quando Moedas se queixa do atraso, fazendo o que outros já fizeram antes dele, ao contrário do ditado popular ninguém se zanga e todos nos enganaram.
Arribam então alguns analistas para desmentir as alterações climáticas, como é que não se vê que cheias irregularmente regulares são o destino e não um resultado de erros humanos que acentuam fenómenos extremos, tudo isto é normal. Este álibi consolador é a chance de contestar o consenso científico, posto assim entre parêntesis pela conveniência do crime (quase) perfeito, que esconde o culpado imediato — sim, há a corrida ao fóssil e aos subsídios poluentes, mas sempre se dirá que não foi uma dessas decisões que provocou aquela seca ou esta inundação. É o encanto do álibi: permite não fazer nada e reclamar uma pose. Essa é a história das nossas cheias.
Artigo publicado no jornal “Expresso” a 16 de dezembro de 2022