Há debates incontornáveis, aqueles debates a que hoje esquerda não deve fugir.
A expansão mundial do capitalismo trouxe consigo a generalização da relação de antagonismo entre burguesia e proletariado e criou as bases da sua própria extinção. Esta foi, pelo menos, a opinião expressa por Marx e Engels em 1848 no Manifesto. Estes mesmos autores vaticinaram até que os interesses, as situações de vida no interior do proletariado se tornariam cada vez mais semelhantes com o avanço da industrialização. Na realidade, eles estavam a fazer o contraste com as sociedades não industrializadas, anteriores ao capitalismo, onde pontificava a diversidade, a descentralização e a dependência pessoal, já que a mundialização do capitalismo nunca poderia significar uma homogeneização total das condições de vida e de luta dos trabalhadores. E se isso já era verdade no século XIX, é-o muito mais hoje com a globalização, a extensão do regime do salariato a atividades na esfera da reprodução social e com as metamorfoses do próprio regime de salariato (uberização, platamorfização, etc).
Isto significa que a solidariedade entre trabalhadores, quando existe, resulta não tanto da total identidade das suas condições materiais de vida, mas muito mais da complementaridade e da interdependência que o próprio capitalismo gera entre eles, e a mediação desempenhada pelo sistema de representação partidária da esquerda não pode deixar de refletir aquela mesma diversidade. Marx e Engels, eles próprios, reconheciam isto, implicitamente, quando diziam que a fração dos trabalhadores por eles representada é “pois, na prática, o setor mais decidido, sempre impulsionador, dos partidos proletários de todos os países”. Ou seja, não há, nunca houve um partido que representasse toda a esquerda, coexistem no seu interior diferentes pontos de vista e diferentes projetos de transformação da sociedade e as experiências de “socialismo” com partido único só se aguentaram (e se aguentam) com a repressão política de segmentos não tolerados da esquerda e a supressão de liberdades democráticas.
Da mesma forma que, na sociedade, um partido não se pode substituir à diversidade política sem ser à custa de procedimentos antidemocráticos, no interior de um partido, os órgãos executivos e o aparelho só se podem substituir à dinâmica coletiva e à riqueza de ideias gerada pela participação e pela diversidade se as tendências para o jacobinismo, isto é, para o centralismo autoritário, vingarem. E esta última hipótese será tanto mais fácil de se concretizar quanto mais escassearem no partido mecanismos compensatórios realmente capazes de atenuar o peso esmagador de maiorias sustentadas a partir do controlo total das instâncias executivas. São os checks and balances (pesos e contrapesos), princípios habitualmente invocados para assegurar a boa governação, evitando a destruição da separação de poderes no sistema político de um país, mas igualmente aplicáveis no âmbito da arquitetura interna das organizações políticas (efetivo direito de tendência, valorização das minorias, representatividade política dos órgãos eleitos baseada em documentos de orientação aprofundados, rotatividade dos eleitos e dos funcionários, etc).
Aliás, as duas vertentes expostas são inseparáveis. A complexidade da realidade social, as diferenciações dentro de cada classe social, a natureza contraditória de muitos fenómenos, tudo isso faz com que se criem apreciações diversas, agrupamentos e correntes de opinião igualmente distintos, atravessando não só a sociedade como os próprios partidos políticos, que mergulham as suas raízes nesse mesmo terreno. Não é por acaso, só para citar um exemplo clássico, que o Partido Comunista da União Soviética, em 1921, no seu X congresso, suprimiu as fações (tendências), que sempre existiram ao longo da sua história, depois de o Estado Soviético ter decretado a supressão dos partidos de oposição. Medidas então consideradas excecionais e transitórias no contexto das dificuldades da guerra civil, mas que se tornaram definitivas e deram lugar a um regime monolítico, incapaz de se reformar e de retomar a luta política pluripartidária e a vida partidária democrática.
Inversamente, um partido que cultive a substituição da vontade coletiva dos seus membros pela determinação de um pequeno grupo executivo, estará mais propenso, no caso de chegar ao poder, a replicar este modelo substituindo a iniciativa das massas pela sua obstinação como vanguarda. Esta foi, aliás, uma das críticas que, entre outros, Rosa Luxemburgo teceu ao desenvolvimento da revolução russa, entre 1917 e 1923, quando os bolcheviques adotaram uma série de medidas de restrição das liberdades democráticas: essas medidas tenderiam a retomar a lógica jacobina que já estaria contida em embrião no seu modelo de partido, e que teria levado à substituição desse mesmo partido por um pequeno comité dirigente empenhado em concretizar uma espécie de missão histórica.
Perante a crise de perspetivas que atinge a esquerda no seu conjunto, todas as oportunidades, por mais insignificantes que pareçam, devem servir para revelar aquilo que se rejeita e aquilo que a identifica. A esquerda, para ter futuro, precisa de uma nova utopia adaptada às necessidades do século XXI, evitando repetir erros e apontando para uma alternativa socialista ao capitalismo que colha o melhor do balanço das experiências do passado. A viragem conservadora e a expansão da extrema-direita que vivemos nas sociedades contemporâneas é, também, um sinal do vazio criado pela falta dessa utopia. Vivemos sob o signo da ditadura do presente e as projeções do futuro só se fazem sentir em torno de expectativas sombrias e de saídas duvidosas. É preciso romper este bloqueio, evitar a falta de diferenciação que faz com que as diferentes formações políticas possam ser vistas como uma espécie de marca branca do hipermercado eleitoral da esquerda.
Artigo publicado em “Raio de Luz” do mês de maio de 2024
