Um domingo à noite em Portugal. Depois de diversos jornalistas especializados na área financeira terem sido convenientemente avisados com briefing nos dias anteriores, depois de Marques Mendes ter recorrido ao seu "cruzamento de fontes" para antecipar 24 horas antes o que aconteceria 24 horas depois, após ser dado como sólido há menos de um mês o que é agora considerado puro estado tóxico, eis que o anúncio formal se aproxima do comum dos mortais cidadãos portugueses.
A máscara cai e o povo pára: Carlos Costa, governador do Banco de Portugal, faz uma comunicação àquela parte do país que não foi a banhos. Passos Coelho, a banhos, nada deve ter visto, à semelhança de um Governo que se não está a banhos está a sal de frutas. Ninguém mais apareceu e Carlos Costa foi um homem só. E sólido, como apelidou o BES, a 10 de Julho, no momento em que a CMVM suspendeu as acções do banco em bolsa. Ouvimos senhor.
Após esta conversa em família com Carlos Costa, ficou claro que estamos perante mais uma banhada. Mais uma, desta vez com o impacto de uma "Goldman Sachs à portuguesa", o fim da linha para o segundo maior banco privado português, assalto perpetrado por uns quantos marginais financeiros vagamente conhecidos e cuja acção era crepuscular. Viviam na obscuridade mas eram tentaculares, surpresa total. Ricardo quem? Espírito o quê? Ninguém sabia, ninguém foi informado, a arquitectura da crise foi de origem desconhecida. Mestres do disfarce, estes golpistas de alta finança que nunca deram a cara. Seus dissimulados! Pausa para café: então não foi um tal Salgado, na altura presidente do BES, que preferiu manter a instituição longe de qualquer intervenção estatal, afastando-se da linha de recapitalização em 2011? "É o Ricardo, é o Ricardo do Espírito do BES", grita o povo! Aquele que afirmou, numa entrada a pés juntos, que "o Estado é um desastre a gerir bancos"! Recordo-me agora como se fosse hoje. Pois, conheço-o vagamente.
É verdadeiramente indecorosa a atitude, desfaçatez e cara-de-pau de quem nos oferece comida requentada como sendo peixe fresco acabadinho de sair do mar salgado. Nem é trocadilho, asseguro. Das profundezas do processo BES/GES uma certeza existe: ninguém ainda explicou por que razão o Banco de Portugal, CMVM, Governo e Ministério Público acordaram, subitamente, como belas adormecidas para o ocaso, apesar da sucessão de vários negócios obscuros ligados ao BES. Por explicar está também por que razão subjectiva o Banco de Portugal permitiu a Ricardo Salgado continuar em funções no BES naqueles 15 dias finais em que movimentou e delapidou o banco em mais de 1500 milhões de euros com operações à margem de todas as regras (sendo que a procissão ainda vai no adro). Por explicar está por que razão se permite a um banqueiro - que se "engana" em 9 milhões de euros na sua declaração de IRS - a continuidade à frente de um banco se, pela lógica, não teria sequer lugar na secretária de um qualquer gabinete de contabilidade de vão de escada. Por explicar está como o doutorado "honoris causa" (pelo ISEG de João Duque, há dois anos, pelos serviços prestados a cultura, à ciência e economia), desembolsa 3 milhões de euros de caução para sair em liberdade e não lhe é imposta a prisão domiciliária mas tão-só a proibição de se ausentar de Portugal, num país onde Fátima Felgueiras escapou para o Brasil como e quando quis.
"Os ricos que paguem a crise", lia-se nos murais do PREC. Desejo fatal e engano histórico: não pagam, nem mesmo quando a crise é deles. A solução para o "Novo Banco" está intimamente ligada aos contribuintes e chegará aos nossos bolsos mais cedo ou mais tarde. Os actores da crise, com património de milhares de milhões de euros, vêem os murais do PREC em livros com papel couché. E riem-se. É por de mais evidente que andou muita gente a fazer de conta que não sabia ou a não querer saber do que quer que seja quando tinha obrigação de saber, regular e actuar. Ouvindo Carlos Costa, no domingo [3 de agosto] à noite, parecia que nos contava um segredo de última hora, murmurado por um qualquer espírito santo de orelha, alerta vermelho após uma planície de desinformação. Na segunda-feira [4 de agosto], Ricardo Salgado emite um comunicado-síntese onde assegura que falará no tempo certo, ou seja, após a conclusão da auditoria forense que decorre. Uma espécie de "um dia a gente vê-se por aí". Alguém me pode dizer se o senhor já saiu de casa?
Artigo publicado no “Jornal de Notícias” em 5 de agosto de 2014