Escândalo: médicos querem cumprir horário de trabalho!

porBruno Maia

05 de outubro 2023 - 23:27
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Os médicos estão a dizer que para além dos 3 meses de trabalho a mais que já fazem, trabalhar mais 4 meses e meio, numa altura em que o governo aprova um novo regime de trabalho que lhes retira direitos, é insuportável.

Os médicos estão a entregar, de forma massiva, pedidos de escusa de horas extraordinárias, para além das legalmente obrigatórias. Na prática, estão a pedir para... cumprir o seu horário de trabalho! Há quem queira caracterizar esta atitude de forma maléfica, mas na verdade ela é bastante tímida! Vamos aos números.

O SNS terá cerca de 23.000 médicos hospitalares (dados do INE). Apenas 2.000 têm horário parcial (inferior a 35h), ou seja, a esmagadora maioria do médicos tem um horário de 40h semanais. São os únicos profissionais que trabalham para o Estado com um horário semanal de 40h, e não 35h, o que por si só significa que trabalham mais 2 meses por ano do que os restantes trabalhadores da função pública.

Em 2022, o Estado português gastou 108 milhões de euros com o pagamento de horas extraordinárias aos médicos (dados do próprio Ministério da Saúde), e prevê-se que os médicos tenham feito, no mínimo, 10 milhões de horas extraordinárias. Ou seja, em média, cada médico do SNS fez 470 horas extra em 2022. São mais 18 semanas de trabalho, 4 meses e meio, para além do horário normal.

Com a entrega destas escusas em fazer horas extra, os médicos não estão a pedir para deixar de trabalhar mais 2 meses do que a restante função pública. Também não estão a pedir para deixarem de fazer as 150h extraordinárias. Estão a dizer que para além destes 3 meses de trabalho a mais que já fazem, trabalhar mais 4 meses e meio, numa altura em que o governo aprova um novo regime de trabalho que lhes retira direitos, é insuportável.

A única proposta que o governo tem para a carreira médica é a dedicação plena. Um novo regime que promete um pouco mais de salário, em troca de muito mais trabalho e perda de direitos. Este regime exige aos médicos que abdiquem do descanso compensatório (as horas de descanso que nos são devidas depois de fazermos 24 horas de trabalho consecutivo), que a jornada de trabalho diária passe a ser de 9 horas e que o trabalho aos sábados seja considerado “regular”.

Os médicos e os restantes profissionais de saúde têm aguentado o SNS com milhões de horas extra, incontáveis horas não pagas e, sobretudo, com taxas de burn-out inaceitáveis. Sem nenhuma perspetiva de melhoria da sua situação profissional, esgotadas as negociações com os sindicatos, resta aos médicos pedirem que se cumpra a lei: fazer as 150h extraordinárias por ano e não mais!

À medida que forem fechando urgências e blocos operatórios nas próximas semanas, a propaganda contra os médicos vai-se intensificar: seremos responsabilizados porque queremos cumprir o nosso horário de trabalho! Só que o SNS está em crise há muitos anos, os fechos de urgências têm-se vindo a acumular, assim como os utentes sem médicos de família ou as listas de espera. A crise não é de agora e não é causada por médicos a cumprir o seu horário. É o resultado de anos de desinvestimento, suborçamentação e sim, por recusa deste governo em negociar as carreiras dos profissionais. A grelha salarial dos médicos é de 2013, negociada com os sindicatos por um governo de direita. Em 8 anos, o Partido Socialista não conseguiu negociar. É seu o fracasso, é sua a responsabilidade pela crise atual do SNS.

As semanas / meses que os médicos trabalharam “a mais” em 2022

Figura 1 – As semanas / meses que os médicos trabalharam “a mais” em 2022
Bruno Maia
Sobre o/a autor(a)

Bruno Maia

Médico neurologista, ativista pela legalização da cannabis e da morte assistida
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