Escampar a desesperança

porFrancisco Louçã

12 de maio 2025 - 16:29
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A cultura da desesperança infiltra-se de tantas formas, pela noção da inevitabilidade da desumanidade (o apagão de Gaza) ou da condenação à desigualdade, a incerteza sobre o futuro, todo esse trauma vai fazendo uma forma de política. É dessa desesperança que é preciso escampar.

Escampar, a bela palavra que o Fernando Alves foi desencantar num livro de Aramburu e que logo descobriu que passeia pelo castelhano como pelo português, tem um sentido que pode ser apropriado em tantas circunstâncias. Afinal essa é a magia da linguagem: inventamos o que não conhecemos, adaptamos o que mal conhecemos. E é mesmo de invocação que se trata, pois aquele termo significará originalmente parar de chover, o que bem agradecia aqui em Braga, a cidade onde vivo por estes dias.

Parar de chover ou termos uma trégua quanto à zanga do elementos foi certamente o que muita gente pediu há uma semana, no dia do apagão. Não era a inclemência do tempo ou o incómodo da chuva que nos amofinava naquele caso, mas a total incerteza: sem comunicações – excepto a Antena 1 e alguma emissão de rádio que escapou ao apagão e que merece o maior elogio pelo profissionalismo e dedicação ao bem comum – e na incerteza completa sobre o que viria e quando viria, foi como se a vida tivesse entrado numa outra dimensão, num universo paralelo.

Totalmente vulneráveis, sem supermercados, salvo raras excepções e o empenho das pequenas lojas, sem multibanco, com os frigoríficos a derreterem, uma grande maternidade a uma hora de perder a energia, os ministros desorientados a discutirem o envio de automóveis talvez atestados de gasóleo para assim acudirem a emergências que nem conseguiam mapear, bem precisávamos de escampar.

Talvez seja essa uma metáfora do país, mesmo que mais incerta do que o destino de um apagão afinal curto: a cultura da desesperança infiltra-se de tantas formas, pela noção da inevitabilidade da desumanidade (o apagão de Gaza e o bombardeamento dos seus hospitais) ou da condenação à desigualdade, a incerteza sobre o futuro, todo esse trauma vai fazendo uma forma de política. Note-se que muita da linguagem que a alimenta procura deliberadamente esse efeito de medo, instilando que tudo é inelutável, que a condenação é o destino. Mas, se assim fosse, onde ficaria a liberdade? É dessa desesperança que é preciso escampar.

Este texto é parte da intervenção de Francisco Louçã no podcast “Um pouco mais de azul”, onde também participam o jornalista Fernando Alves e a poeta Rita Taborda Duarte. O podcast completo aqui

Francisco Louçã
Sobre o/a autor(a)

Francisco Louçã

Professor universitário. Ativista do Bloco de Esquerda.
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