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“Esbulho”?

A nossa polémica sobre a reforma legislativa da floresta está muito longe de ser com o PCP.

O texto de opinião sobre a floresta de João Frazão com o título “Atávicos”?, dirigido pessoal e exclusivamente a mim e ao Bloco de Esquerda, publicado no passado dia 22 neste jornal, possibilita-nos explicitar melhor a nossa posição sobre este debate nacional acerca da floresta que o dirigente do PCP parece reduzir à falsa ideia de o banco de terras servir para o “esbulho da pequena propriedade”.

O abandono e as terras sem titular identificado, resultante das mudanças económicas no mundo rural e da emigração, desprotegem a pequena propriedade, contribuem para o despovoamento e o empobrecimento, aumentam o risco de incêndio nos territórios.

A proposta do Bloco para o banco de terras assegura a titularidade dos prédios aos seus donos e procura dar-lhes um uso adequado, através de um contrato de arrendamento garantido pelo Estado. Não há esbulho, há uso produtivo, garantias e rendimento para os titulares, mesmo que estejam na Amadora ou na Austrália.

Outra questão é a das chamadas terras sem dono conhecido e abandonadas. Avançando-se com o tão reclamado cadastro dos prédios rústicos e mistos, prevê-se que surjam parcelas cujos titulares não são localizados nem identificados. O Bloco acordou com o Governo que essas terras são acolhidas no banco de terras, registadas provisoriamente a favor do Estado, ficam 15 anos protegidas a aguardar que os seus donos apareçam e as reclamem sem custos. Estas terras nunca poderão ser vendidas a privados.

Este banco de terras, que seria o primeiro passo de uma política pública mais ampla de ordenamento, gestão e valorização da floresta, foi rejeitado no Parlamento com os votos da direita e do PCP.

O João Frazão não me levará a mal, mas a nossa polémica sobre a reforma legislativa da floresta está muito longe de ser com o PCP, com o qual convergimos em diversos aspetos. A nossa profunda divergência é com os poderosos interesses que conduziram a floresta ao caos atual, por demissão do Estado das suas responsabilidades no apoio à organização dos pequenos e médios produtores, no ordenamento, proteção e gestão florestais.

Independentemente da apreciação que cada um possa fazer sobre as propostas do Bloco, as nossas diferenças com o Governo estão claras nos projetos lei que apresentámos em abril: novo regime jurídico de arborização, rearborização e adensamento florestais; criação de unidades de gestão florestais nas formas associativa e cooperativa; criação do banco público de terras.

Sabemos que tal não aconteceu com as restantes forças políticas parlamentares. Não era urgente revogar a “lei da liberalização do eucalipto” do governo anterior? Não era preciso avançar no ordenamento e na gestão associativa do minifúndio florestal, na proteção do ambiente e dos pequenos produtores explorado pelas celuloses? Fazer o cadastro de forma célere e combater o abandono florestal não interessava?

Quando o Bloco exigiu na Comissão de Agricultura que não se terminasse mais uma sessão legislativa sem que começasse a ser aprovada legislação para a reforma florestal, não faltou quem viesse dizer que “não se pode legislar à pressa” e que “quem esperou tantos anos bem pode esperar mais uns meses”. Vejam lá, há 20 anos que andam com esta farsa, pelo menos desde que foi aprovada a Lei de Bases da Floresta. Adiamento a seguir a adiamento do investimento público na floresta, sempre com os melhores argumentos.
Entretanto, mês após mês e ano após ano, a monocultura de espécies de elevada inflamabilidade expande-se, os incêndios são cada vez mais incontroláveis e perigosos, as comunidades locais empobrecem e emigram, o interior despovoa-se, as espécies autóctones recuam, o ambiente e a paisagem degradam-se.

O Bloco não cede à obsessão dos que querem a concentração privada da pequena propriedade e sonham com uma floresta intensiva para transformar em pasta de papel, controlada por fundos financeiros, nem alinha nos mitos de um mundo rural estático, infelizmente cada vez mais despovoado e entregue à sua sorte.

Em setembro próximo, o Bloco agendará na Assembleia da República o debate sobre as formas de gestão agregada da floresta e os apoios públicos ao associativismo, para que os pequenos produtores ganhem escala, consigam discutir com a indústria a valorização da sua matéria prima, e a floresta seja gerida com os mais elevados critérios ambientais e de racionalidade económica.

Não contem connosco para emperrar as mudanças necessárias na floresta, por muito que isso custe aos interesses instalados.


Artigo publicado no jornal Público, 26/7/2017

 

Sobre o/a autor(a)

Docente universitário IGOT/CEG; dirigente da associação ambientalista URTICA. Dirigente do Bloco de Esquerda
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