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Era uma vez um povo que se libertava

O capitalismo tentou dividir o povo, substituiu o espaço pelo movimento. O povo unido ocupou o seu espaço, a rua, e constituiu-se em movimento.

No início eram alguns, depois uns quantos se foram juntando, mais um e outro, mais uma e outra também. À hora marcada tantos 'uns' assim formados eram uma massa enorme, compacta, que caminhava no mesmo sentido, na mesma direção, com o mesmo objetivo. Formara-se um coletivo.

A rua não era terreno de passagem, não era apenas local de passagem. A rua era o destino. Era mesmo para ocupar.

No país foram muitas centenas de milhares de pessoas. Pessoas unidas que gritavam 'o povo unido jamais será vencido'. Pessoas ocupando o espaço nobre da democracia, a rua, que vinham exprimir um objetivo partilhado por todos. Estavam na rua para mandar o governo para a rua. Como é que se gritava? 'Passos, ladrão, pede a demissão!'. É preciso explicar a mensagem quando ela é tão cristalina?

Foi um momento extraordinário que é muito mais do que apenas um momento e vai muito além do meramente extraordinário.

Primeiro, porque essa enorme manifestação de 2 de março sucede a uma enorme manifestação em 15 de setembro, e o gigantismo das duas manifestações, em tão curto espaço de tempo, torna evidente que a indignação em Portugal não é património exclusivo de conversa de café ou de ativismo de sofá. Cada pessoa que decide vir à rua contribuir com a sua presença com o objetivo de derrotar a austeridade torna-se um agente político transformador e ativo. E isso é de relevar.

Segundo, a convergência de tantas pessoas diferentes. Tantos pensionistas, desempregados, precários, trabalhadores mal pagos; avós a defender o futuro dos netos, estudantes a defender o seu direito a estudar, professores a reclamar uma melhor escola pública; filhos a defender a reforma dos pais, pais a dizer que não querem ver os filhos a emigrar, médicos a defender melhores cuidados de saúde para os seus utentes. Tantas pessoas com um objetivo: derrotar a austeridade. E naquela imensa massa que partilha um objetivo, formando por isso um coletivo, a sua mensagem é também de solidariedade. Solidariedade porque defendem os seus direitos e os direitos dos seus iguais. Sim, seus iguais, todos iguais, porque naquela manifestação, evidenciando as suas diferenças individuais, partilhavam das mesmas condições de vida: exploração, precariedade, desemprego. Por isso, todos iguais, e todos contra a austeridade, contra o governo!

São passos que se vão dando, de manifestação em manifestação, de momento em momento. Passos interessantes. O capitalismo que tinha rechaçado a força do povo, a força do coletivo, a força dos trabalhadores, por via da sua fragmentação e da desregulamentação do mercado de trabalho, assiste a um novo reagrupamento desse imenso povo que se quer libertar. No mundo desmaterializado, dinâmico e fragmentário, a precariedade substituiu as relações de trabalho coletivo, o movimento substituiu o espaço, o desemprego é o instrumento de chantagem e de divisão entre os trabalhadores. Revestiu-se tudo isto de uma narrativa de (pós-)modernidade e promoveu-se a individualização competitiva. Curioso ver que a condição de precário, a condição de desempregado, a condição de trabalhador mal pago está a unir pela contestação. Os precários exigem estabilidade, os desempregados reclamam emprego e os explorados querem mais salário. Os reformados exigem o mesmo para os seus filhos e netos, os jovens exigem o mesmo para os seus pais. E o povo une-se perante estes instrumentos que foram aplicados para o dividir. A austeridade? Unanimemente chumbada! O governo? Obviamente demitido!

A meio da manifestação, algumas nuvens mais cinzentas chegaram a ameaçar. Havia alguns narizes no ar a inspecionar o céu. E a manifestação continuava, engrossando, avançando. Qual era o problema? Não é a chuva que molha esse povo. O que nos molha é o desemprego. O que nos molha é não termos nem salário, nem futuro. O que nos molha é termos passado uma vida a trabalhar e não termos reforma que chegue para a comida na mesa e para os medicamentos na farmácia. Isso é que nos molha! O resto? Só poderia mesmo vir refrescar as gargantas!

O capitalismo tentou dividir o povo, substituiu o espaço pelo movimento. O povo unido ocupou o seu espaço, a rua, e constituiu-se em movimento. Sabia bem que o objetivo que trazia para a rua não iria ser obtido quando a manifestação chegasse ao fim, mas sabe também que está pronto para continuar a inundar ruas para que o seu objetivo seja alcançado no fim. É um povo livre aquele que combate a austeridade e que sabe que é ele quem decide sobre os seus representantes no governo.

Sobre o/a autor(a)

Doutorando na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e investigador do trabalho através das plataformas digitais. Dirigente do Bloco de Esquerda
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