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Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto

Quem se bateu pela geringonça e a construiu com entusiasmo entre 2015 e 2019 (incluo-me nesses), gostaria que fosse possível, na salvaguarda da sua pluralidade e diferenças estratégicas, o campo político que a fez ter hoje um programa comum para mudanças no país.

E não quer que se percam oportunidades de articulação e resistência. Mas afinal, o que aconteceu para termos este desfecho?

À esquerda, ou pelo menos numa parte da esquerda, parece ter-se instalado uma compreensível apreensão pelo momento político que vivemos. O Presidente da República conspira com Paulo Rangel e prepara a marcação de eleições, tendo descartado a possibilidade de apresentação de uma nova proposta de Orçamento. O PS, ao mesmo tempo que prepara a campanha eleitoral, bombardeia pelos seus canais que a culpa “é do PCP e do Bloco”, procurando estigmatizar estes dois partidos e ir tecendo a tão desejada maioria absoluta que não conseguiu em 2019.

Que haja angústia, preocupação e frustração com a situação a que chegamos é perfeitamente legítimo. Qualquer pessoa do “povo da esquerda” a sente. Eu também. Quem se bateu pela geringonça e a construiu com entusiasmo entre 2015 e 2019 (incluo-me nesses), gostaria que fosse possível, na salvaguarda da sua pluralidade e diferenças estratégicas, o campo político que a fez ter hoje um programa comum para mudanças no país. E não quer que se percam oportunidades de articulação e resistência. Mas afinal, o que aconteceu para termos este desfecho?

A geringonça acabou!”

Sim, a geringonça acabou. Mas não foi agora, e muito menos com o voto do Orçamento. A geringonça já não existe há dois anos. Morreu na madrugada de 11 de outubro de 2019 – já com um novo Parlamento eleito – através de um comunicado do Partido Socialista anunciando a recusa de qualquer acordo escrito para a nova legislatura.

Ao fazê-lo, um dia depois de uma reunião com as confederações patronais, e sublinhando que mexer nas leis laborais não era “prioritário”, o PS recusava a proposta do Bloco de um acordo escrito para os 4 anos, que permitiria estabilidade política e enquadrar a aprovação dos 4 orçamentos da legislatura.

A geringonça já não existe há dois anos. Morreu na madrugada de 11 de outubro de 2019 através de um comunicado do PS anunciando a recusa de qualquer acordo escrito para a nova legislatura

A estratégia de António Costa era não ter nenhum compromisso estável com a esquerda, podendo escolher as alianças que entendesse na Assembleia durante o ano, em geometria variável, e obrigar a esquerda a aprovar os seus orçamentos sob a chantagem da “crise política”, sem ter necessariamente de incorporar nenhuma proposta das esquerdas que não encaixasse já no seu programa, limitando-se a negociar “ritmos e modos” do que já era agenda sua, como explicou ao Público, por estes dias, com lucidez e perspicácia, o ex-ministro socialista Paulo Pedroso. Essa estratégia tinha tudo para dar errado e talvez tenha sido escolhida para dar errado. A realidade provou que era uma estratégia insustentável. Um “pântano” que existe há dois anos, sublinha Daniel Oliveira, que muita gente não quis ou fingiu não ver, mesmo quando os sinais estavam aí.

É imperdoável a esquerda ter votado com a direita!”

Os partidos à esquerda do PS votaram contra um Orçamento que consideraram não responder bem aos principais problemas do país. E não quiseram validar um documento em que, apesar de toda a encenação mediática, não identificaram verdadeiramente a presença das suas reivindicações e do que consideram ser o seu mandato. Um documento, além do mais, onde não reconheceram as garantias de que promessas incluídas no texto da lei orçamental são depois executadas, transformando-se nesse caso numa fraude. Apenas um exemplo que conheço muito bem: pela terceira vez, o Governo inclui 30 milhões para os cuidadores informais, sem qualquer garantia de que é a sério: em 2020, dos 30 milhões foram gastos menos de 300 mil euros, 1%; em 2021, dos 30 milhões tinham sido gastos pouco mais que 700 mil euros. Isto é enganar as pessoas e os partidos que votam os Orçamentos.

As múltiplas publicações de gente indignada com o facto de a esquerda ter votado contra um documento que a direita também rejeita parecem contudo esquecer que, independentemente do acerto ou não da decisão do Bloco e do PCP, as razões da esquerda e da direita contra este Orçamento são opostas.

o PS que agora tanto invoca o "espírito da geringonça” votou mais vezes com o PSD (1535 vezes), o CDS (1175) e com a IL (1122) do que com o Bloco (1107 vezes) e o PCP (1079 vezes)

Mas sobretudo, não se pode ignorar o que está a acontecer diariamente no Parlamento há dois anos (e sem grande escândalo) e que ajuda a explicar as pontes que António Costa foi queimando com os seus parceiros. Nesta legislatura, o PS que agora tanto invoca o "espírito da geringonça” votou mais vezes com o PSD (1535 vezes), o CDS (1175) e com a IL (1122) do que com o Bloco (1107 vezes) e o PCP (1079 vezes). São dados objetivos. Pode argumentar-se que nem todas as votações na AR têm o mesmo peso e centralidade, e é verdade. Mas em matérias que o PS sabia serem essenciais para a esquerda, o PS juntou-se à direita para chumbar as propostas da esquerda e para manter regras que a direita deixou na lei. Aconteceu em praticamente todas as votações da lei do trabalho (despedimentos, férias, trabalho por turnos, revogação dos cortes no subsídio de desemprego, por exemplo), aconteceu nas regras do debate democrático e parlamentar (quando PS e PSD se juntaram para acabar com os debates quinzenais e retirar centralidade ao Parlamento) ou em medidas de reversão de ruinosos negócios da direita (quando PS juntou os seus votos à direita para chumbar a reversão da privatização dos CTT, por exemplo). Assim, a indignação seletiva sobre os “votos com a direita” resulta da falta de atenção ou conhecimento desta realidade (talvez seja o caso da maioria do povo de esquerda), da desvalorização de tudo o que não seja o Orçamento ou, no caso de governantes e dirigentes socialistas que se multiplicam em publicações, de cínico oportunismo eleitoral.

Bloco e PCP não pensam no país, só nas suas táticas eleitorais"

Há obviamente razões válidas para se discordar das opções do Bloco, que já vêm do ano passado, ou do PCP, que este ano votou contra. Mas há uma acusação impossível: a de que o seu sentido de voto resulta de um cálculo eleitoral. Nada indica que o Bloco e o PCP esperem grandes ganhos. Pelo contrário, a haver eleições, poderão ser os partidos que menos beneficiarão delas, dada a intensa campanha de vitimização do Governo. Ou seja, tomaram uma decisão sabendo ser possível, embora não uma fatalidade, que no próximo ato eleitoral percam votos, recursos e mandatos. Não foi uma decisão a pensar “em si próprios”, ou um cálculo sobre o seu “mercado eleitoral”, mas sim assente na complexa avaliação que fazem do que é a fidelidade ao mandato que receberam, a consistência da proposta de António Costa para responder ao momento que vivemos ou a necessidade de assegurar mínimos políticos capazes de recuperar rendimentos para quem trabalha, de reequilibrar as relações sociais e laborais ou de salvar o serviço nacional de saúde do ataque e da promiscuidade com os privados.

Claro que pode dizer-se que, mesmo sabendo que este Orçamento não responde, que o SNS vai continuar a degradar-se em 2022 e que o PS pede uma maioria para manter intocada a lei da troika no trabalho, os partidos à esquerda tinham a obrigação de viabilizar a governação de António Costa. Nesse caso, poupariam a atual polémica mas teriam um outro problema: o de explicar por que razão deixam passar um documento e uma estratégia em que não acreditam e que acham que será incapaz.

Vem aí a extrema-direita”

A extrema-direita já cá está. As abstenções nos Orçamentos do PS são o antídoto para o seu crescimento? Seria bom que fosse assim tão simples, mas a realidade desmente esse argumento. Desde 2019, as abstenções da esquerda nos Orçamentos do PS não impediram a extrema-direita de crescer. Logo, está enganado quem acha que é essa a solução. O crescimento das direitas, nomeadamente da sua componente mais radical, alimentar-se-á do descontentamento popular com medidas ineficazes, com a degradação do SNS, com a ausência de políticas robustas contra a pobreza, com a precariedade da vida, com o pântano político. Ficarmos paralisados pelo medo e abrirmos mão do que achamos ser essencial para essas políticas não é combater a extrema-direita, é ficar tolhido por ela, sem ter nenhuma garantia do seu esvaziamento. Temer a extrema-direita não é, em si mesmo, estratégia eficaz para contê-la: haverá eleições em algum momento, e nada garante que daqui a dois anos a extrema-direita não estivesse em melhores condições para disputá-las do que agora. Por isso, mais que temê-la, há que combatê-la. Atrasar as medidas estruturais que sejam sentidas e reconhecidas pela população que trabalha e vive com dificuldades pode contribuir, isso sim, para entregar o futuro à direita.

Por que não houve acordo, então?

Já toda a gente está farta do jogo de passa culpas, mas é importante fazer algumas perguntas, porque até hoje ficaram sem resposta. O que tornou impossível a António Costa aceitar a reposição da lei laboral da autoria de Vieira da Silva no que diz respeito aos despedimentos? Por que razão não aceitou sequer repor os 20 dias por ano de trabalho como compensação por despedimento (atualmente são 12 dias), tal como constava no próprio memorando da troika? Por que razão não pode haver um regime de dedicação exclusiva no Serviço Nacional de Saúde, tal como propuseram Arnaut e Semedo?

E por que razão é impossível anular os cortes aos 62 mil pensionistas reformados entre 2014 e 2018, que se se reformassem hoje já não sofreriam o corte do fator de sustentabilidade, mas que vão tê-lo para toda a vida? Ainda mais sabendo que essa proposta teria um impacto de cerca de 60 milhões de euros, ou seja, um décimo dos 620 milhões de euros não cobrados em impostos aos reformados nórdicos e ingleses ao abrigo do “eldorado fiscal” que dá pelo nome de “regime dos residentes não habituais”?

Ou por que não aceitou António Costa as propostas da esquerda sobre contratação coletiva - como até a insuspeita ex-ministra socialista Maria de Lurdes Rodrigues recomendou que se fizesse para obter um acordo à esquerda para o Orçamento? A única resposta plausível é porque não quis que esse acordo existisse, ou não foi capaz de negociá-lo.

E agora?

O povo de esquerda vê-se assim confrontado com três possibilidades. A primeira é premiar António Costa e a sua estratégia de auto-suficiência, transferindo e concentrando votos nele para garantir uma governação que dispense a esquerda e que reforce quem, no PS, entendeu que não devia haver qualquer acordo escrito de legislatura com a esquerda. A segunda é reforçar a agenda negocial da esquerda, votando nos partidos que se bateram por alterações estruturais e dando força à ideia de que deve haver um acordo escrito para uma governação consistente. A terceira é desistir, entregando-se ao desalento e à abstenção. Cada pessoa é a soberana do seu voto e o mais provável é que haja um pouco de tudo.

não devemos desistir de abrir caminhos, nem desperdiçar possibilidades futuras. Teremos sempre de procurar organizar a esperança e começar de novo

O que não valerá muito a pena é alimentar a ideia de que a solução para o impasse criado por António Costa em 2019 é cancelar a democracia pelos riscos que os seus resultados podem produzir. Vivemos tempos de incerteza e de volatilidade, é certo. Mas a tal “vaga de direita” não é nem um facto nem uma inevitabilidade. Aqui chegados, mais do que recriminação mútua, precisamos de discutir soluções. Mais do que a pistola apontada, não devemos desistir de abrir caminhos, nem desperdiçar possibilidades futuras. Porque por mais dificuldades e manobras e ardis e pontes queimadas, teremos sempre de voltar a tentar. Teremos sempre de procurar organizar a esperança e começar de novo.

Artigo publicado em expresso.pt a 30 de outubro de 2021

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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