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Entre o perdão e o esquecimento

O Governo anda desavindo com os portugueses como alguns casais no limite da ruptura. É curioso como alguns ministros ensaiam teses sobre a humildade (e raridade, imagine-se!) do seu pedido de desculpas mas não ousam pedir perdão.

Um dos pedidos mais recorrentes entre casais desavindos é o de perdão. O perdão pode pedir-se, expor-se, implorar-se, chorar-se aos soluços até que - por vezes - acaba por se impor naturalmente.

Decerto que casos há em que não vale nada, zero. Em determinadas situações menores, declara-se apenas como um tímido pedido de desculpas que se eleva à categoria de mártir. À outra parte compete então proclamá-lo, com todas as letras, respondendo solenemente à "pergunta-monumento": perdoas? E normalmente sim, resposta afirmativa em grande parte dos momentos, quando se sente que há gente. Pelas peças da memória que o tempo faz ruir, pela destreza com que o distanciamento consegue fazer separar as águas, na clareza do sofrimento do outro à nossa porta. Abundantemente, sim, perdoa-se. Já esquecer são outras águas, zonas de navegação sombria de alguém consigo mesmo na intimidade. Não tenho memória de alguém perguntar como ponto de partida ou como fim de exposição da legítima defesa: esqueces?

Publicamente, o direito ao esquecimento está na ordem do dia. Na Internet, nas redes sociais, nos motores de busca, há quem se queira apagar do passado numa gestão muito própria e pessoal do arrependimento e, tantas vezes, do abuso. Nada de mais justo na esfera pública. Mas no íntimo de quem sabe, na esfera privada, esquecer não é direito ou prerrogativa. Às vezes é só um golpe de sorte ou uma partida que a vida nos prega.

O direito ao esquecimento dos outros não está nas nossas mãos, não somos nós que o decidimos. É exactamente por esse facto que a pergunta é tão poucas vezes ensaiada, pé de chumbo de qualquer vontade por mais que se queira ou por melhor que se faça. Quem manda na memória, quem proclama o esquecimento? Podemos convocar as forças mais íntimas e as mais férreas vontades: esquecer não está no nosso domínio, não é uma manifestação do nosso arbítrio, não é matéria para o ser humano. Para quem vive e respira, esquecer só pode ser fingir que não aconteceu. Esquecer é mentira. Só se esquece porque desaparece. E desaparecer não é matéria para a humanidade.

A semana passada foi uma semana de apelos à bondade. A ministra da Justiça, Paula Teixeira da Cruz, pediu desculpa pela falência do Citius mas não pela reforma do mapa judicial. O ministro da Educação, Nuno Crato, pediu desculpa pelo erro na colocação dos professores mas não pela deficiente abertura do ano escolar. O primeiro-ministro, Passos Coelho, ter-se-á esquecido dos rendimentos da Tecnoforma quando supostamente beneficiava, enquanto deputado e durante quatro anos, do regime de exclusividade dos deputados que impõe, à luz da lei, a não acumulação de rendimentos. Segundo o seu gabinete, o regime de exclusividade reportava-se a 1992 e não a 1995/99, anos que suscitam dúvidas. E é por ter dúvidas que Passos Coelho não pediu desculpa. Alegou confusão. Ao arrepio do passado de Cavaco Silva, não é verdade que o nosso primeiro-ministro não tenha dúvidas: mas a verdade é que ele se engana e muito. Desculpas antecipadas não são devidas.

Mas não são só três casos pessoais. O Governo anda desavindo com os portugueses como alguns casais no limite da ruptura. É curioso como alguns ministros ensaiam teses sobre a humildade (e raridade, imagine-se!) do seu pedido de desculpas mas não ousam pedir perdão. Todos sabem que não há perdão possível para a subserviência ao poder financeiro mais especulativo e ao eixo mandão desta Europa sem cara no verso da coroa da moeda. É a realidade a operar no senso comum, na sobrevivência e na auto-protecção: perdão rima com demissão de forma demasiado óbvia. E mesmo num país de brandos costumes, arriscar uma rima destas pode acabar em remodelação. Já seriam rimas a mais para este Governo irrevogável.

Termómetro democrático: ainda bem que ninguém clama pelo esquecimento. O direito a não esquecer é, 30 anos depois do antecipatório "1984" de George Orwell em "1984", o último reduto da nossa liberdade, parte de leão da nossa intimidade. Ninguém se esquece do que estamos a passar. Que ninguém ouse pedir.

Publicado no “Jornal de Notícias” em 23 de setembro de 2014

Sobre o/a autor(a)

Músico e jurista. Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990.
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