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Em Lisboa, um encontro sinistro

Portugal, um pequeno país com posições decentes contra a ocupação israelita, teve uma oportunidade de mostrar a sua grandeza. O que exibiu foi sobretudo siêncio — e os servis apertos de mão com os criminosos.

A Lusa anunciou a apresentação de uma queixa à Entidade Reguladora da Comunicação Social, o Sindicato dos Jornalistas apresentou um protesto, o diretor de um outro jornal exprimiu num editorial o sentimento da imprensa no modo como foi tratada esta semana pelo líder israelita Benjamin Netanyahu e pelo secretário de Estado da defesa norte-americano Michael Pompeo, que impediram os jornalistas de recolher declarações na conferência conjunta: com "sobreba", "arrogância" e "desprezo inaceitáveis", prova de como prevalece "a lei do quero, posso e mando".

Esse foi, contudo, como reconheceu Manuel Carvalho, apenas um pequeno episódio de uma visita que, por tantas outras razões, desonra Portugal. Depois de terem tentado reunir em Londres sem sucesso, e de terem contactado outros chefes de estado europeus, Pompeo e Netanyahu escolheram Lisboa para um encontro com um programa de guerra. Em novembro deste ano, a Administração Trump mudou a sua posição sobre os colonatos judeus na Cisjordânia ocupada que, de acordo com a lei internacional, são ilegais. Embora abundem as Resoluções da ONU que, apoiadas nas Convenções de Genebra, declaram a ilegalidade da ocupação daqueles territórios, embora seja essa a posição do Tribunal Internacional de Justiça de Haia, apesar de essa ser também a posição partilhada pela comunidade internacional, incluindo a maioria dos aliados de Israel, a atual administração americana atropelou tudo e todos e Pompeo, um falcão de Trump que foi diretor da CIA, anunciou a mudança da posição americana há poucas semanas. Antes disso, já Trump tinha alinhado com os setores mais extremistas do sionismo ao decidir a transferência da Embaixada americana de Telavive para Jerusalém e ao ter reconhecido a anexação dos Montes Golã.

Netanyahu, que tem no seu cadastro algumas das mais agressivas ações de ocupação de territórios palestinos, vários crimes de guerra contra a Faixa de Gaza com bombardeamentos ordenados por si que mataram milhares de pessoas (incluindo crianças) e uma política de repressão brutal dos povo palestino, encontra-se "em gestão", por não conseguir constituir maioria para um novo governo, e vê-se a braços com uma acusação inédita por corrupção. A reunião com Pompeo faz assim parte de um périplo de legitimação mas tem também uma agenda muito concreta de agressão: a articulação do apoio de Trump à anexação do Vale de Jordão, a parte mais oriental da Cisjordânia, onde vivem 65 mil palestinianos e onde estão 9 mil do quase meio milhão de israelitas que vive em territórios ocupados.

Queiramos ou não encarar a questão, Pompeo e Netanyahu encontraram-se em Lisboa para planearem, conscientemente, mais algumas ações de violência contra a Palestina e de desprezo pela lei internacional, a mesma a cuja defesa o Estado português está vinculado. Recentementem, aliás, o próprio Parlamento reiterou a posição do nosso país, ao aprovar um voto que "reafirma o carácter ilegal dos colonatos israelitas" e que "reitera o direito do povo palestiniano à constituição de um Estado livre, viável, soberano e independente, com capital em Jerusalém Leste, conforme as resoluções da ONU". O mesmo país que há poucas semanas reafirmou isto, podia ter aceitado, sem pestanejar, servir de plataforma para um encontro tão sinistro? Em nome de quê? Em nome de quem?

Mais infeliz ainda foi o triste papel a que se prestaram Augusto Santos Silva e António Costa, que reuniram quer com Pompeo quer com Netanyahu. O primeiro-ministro, que recebeu Netanyahu na sua residência oficial, disse sobre a reunião que "foram abordados diversos temas de interesse bilateral, como sejam o fomento da cooperação económica e procura de parcerias nas áreas da investigação científica, inovação e a água" (a água, que é justamente um dos recursos de que os israelitas vêm privando os palestinianos, sufocando também dessa forma quem vive em Gaza). Sobre a violação de direitos humanos e da lei internacional, o que disse Costa? Nada. Sobre os planos de agressão traçados por Netanyahu e Pompeo, em total desrespeito pelas resoluções da ONU — que no momento até é presidida por um português — o que disse o Governo? Nada. Sobre o plano dos sionistas e de Trump de anexação de mais 30% do território da Cisjordânia, alguma palavra do Primeiro-Ministro? Nada.

Portugal, um pequeno país com posições decentes contra a ocupação israelita, teve uma oportunidade de mostrar a sua grandeza. O que exibiu foi sobretudo siêncio — e os servis apertos de mão com os criminosos.

Artigo publicado em expresso.pt a 7 de dezembro de 2019

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda, sociólogo.
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