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Eleições Brasil: o que a neutralidade da direita portuguesa diz sobre si própria

No Brasil apoiaria Lula. Já a direita tradicional portuguesa tem-se remetido ao silêncio, à falsa equivalência ou à neutralidade. Esta é uma das maiores marcas identitárias da direita portuguesa. Vejamos porquê.

1 – A política económica de fazer crescer o bolo

O melhor resumo da política económica dos governos Lula é que fez crescer o bolo (a riqueza) e, em consequência, quer o capital quer os trabalhadores tiveram direito a uma fatia maior.

Já ouvimos certamente esta metáfora em inúmeras discussões e até já foi inscrita num programa eleitoral do PSD e no manifesto da IL. A metáfora é assumida como identitária para a direita. Dizem que a esquerda só quer redistribuir sem fazer crescer o bolo e que por isso só há empobrecimento de todos. A direita autoproclama ainda que para a direita primeiro é preciso fazer crescer o bolo para que todos fiquem com mais. Faz bem a direita em se distanciar dessa experiência no mundo real.

Perante esta política real de "bolo a crescer" a direita ataca e trata Lula como um papão vermelho. Durante os governos Lula e Dilma, 36 milhões de pessoas saíram da pobreza, com aumento do salário mínimo e um conjunto de políticas assistencialistas que alavancaram o consumo interno. Não será certamente a marca da minha família política de esquerda, mas é sem dúvida uma política de esquerda. Faz bem a direita nacional em nos lembrar disso: qualquer política que desvie tanta riqueza para quem tem menos rendimentos é de facto uma política de esquerda, à direita só há lugar ao esmagamento do valor do trabalho face ao capital.

2 – O vice de Lula

O candidato a vice-presidente (Geraldo Alckmin) foi um dos fundadores do PSD brasileiro, seu candidato presidencial e governador de São Paulo onde deixou a marca em várias privatizações de empresas públicas, a criação de PPPs e a redução da massa salarial dos funcionários públicos. Alckmin trocou de partido este ano para um partido da família do PS, mas a sua marca continua bem vincada à direita.

A aliança da candidatura e de apoio a Lula é de facto bastante ampla, indo da esquerda radical a partes da direita tradicional. Isso também se registou nos governos Lula. Não deixa de ser curioso que a direita portuguesa não coloque a palavra onde está este vice. Há quem grite que a candidatura é um perigo vermelho, o que só mostra o grau de alucinação a que chega o debate político.

3 – O argumento da corrupção

Comecemos pelo início. A direita portuguesa nunca se incomodou com os gigantes casos de corrupção do PP espanhol. Nem sequer com as manigâncias que os seus quadros fizeram com o BPN. Mas não desviemos o assunto, os governos PT foram assolados por esquemas gigantescos de corrupção. Facto.

Com Lula não existiu erosão das entidades democráticas e da separação de poderes. Já o governo de Bolsonaro foi isso mesmo: escândalos de corrupção, alianças com as clientelas, erosão da separação de poderes e destruição dos mecanismos de combate à corrupção.

Aliás, todo o esquema de acusação e julgamento de Lula redundou no juiz Moro passar a ministro de Bolsonaro e na acusação desmoronar. Os Bolsonaristas querem o exclusivo da corrupção no país.

Em conclusão, com Lula há mecanismos de combate à corrupção externos ao poder do governo. Com Bolsonaro há a via verde sem travões.

4 – A falta de carácter genético das pessoas de esquerda ou a afirmação identitária da direita

Alberto Gonçalves, um dos porta-voz da da ofensiva de direita, como seria de esperar, joga nas falsas equivalências. Este ponta de lança, aos microfones do Observador, diz que não arranja "virtudes" para nenhum dos dois e que "o senhor Lula, além das desvantagens do senhor Bolsonaro (...) o que distingue o senhor Lula é ser um corrupto, absolutamente comprovado". Ou seja, o seu argumento principal é que são iguais. Está tudo nas entrelinhas, são iguais, mas há um pior.

Gonçalves explica-nos que em Portugal poucas pessoas verbalizam o apoio em Bolsonaro, alguma por vergonha (pudera...). Mas que à esquerda há quem apoie Lula de forma entusiástica o que "é definidor de quem o pratica". Essas pessoas "são pessoas de esquerda" e talvez haja algo no seu "carácter" que "torne natural que elas gostem de corruptos, talvez por uma questão genética".

Isto é dito por Gonçalves depois do tal iguais, "mas..." Essa é a marca da direita. Na pergunta seguinte há ali um novo "mas...". Ao ser questionado sobre o número de morte causados pela gestão da pandemia por Bolsonaro há a pronta desculpabilização e relativização.

Viremos o jogo. O que é que o silêncio, falsa equivalência e neutralidade da direita portuguesa perante as eleições brasileiras dizem sobre essa mesma direita? Que a política do bolo crescer para distribuir não é de facto uma política de direita, estou extremamente agradecido pelo esclarecimento. E diz mais, que as liberdades civis, a violência e a política de ódio são meros pormenores que nunca incomodaram a direita no seu verdadeiro programa: transferir riqueza dos trabalhadores para o capital. Na metáfora do bolo, despojar aos trabalhadores a sua fatia, entregá-la ao capital e deixá-los com migalhas. A identidade da direita que não se esmorece perante as mortes em resultado uma gestão dantesca da pandemia.

5 – Apoio Lula

Concluo, no Brasil apoiaria Lula sem tibiezas. A vida concreta das pessoas não me é alheia. Não sou indiferente à manutenção de liberdades civis, da convivência sem violência e da democracia. Não me é indiferente uma política que retirou tantos milhões da pobreza a uma política de borlas, benesses e abusos ao capital e ao patronato. Não sou indiferente perante a enorme mobilidade social (uma suposta bandeira da direita, lembram-se) que os governos de lula propiciaram: a filha da criada foi para a universidade, tem casa e emprego. Também não sou indiferente ao que o governo Bolsonaro representa para este povo.

Lula foi vítima das suas próprias políticas, é certo. A escolha pelo assistencialismo esbarra quando acaba o crescimento económico. O bolo cresceu tanto que formou uma classe de super-ricos que, à primeira fragilidade, no crescimento quiseram uma fatia maior do bolo para si próprios. A sua política de alianças potenciou o aparecimento de poderosos partidos à direita. Mas a escolha concreta entre Lula e Bolsonaro está aí e quem se cala também.

E também escolheria Lula porque é com liberdades civis e democráticas que podemos exercer a proposta de alternativas e evitar a violência. É com um governo Lula que se podem formar blocos para políticas mais avançadas e até de oposição a algumas das políticas desse governo.

Já a direita portuguesa cita a personagem Rorschach: "Nunca o compromisso. Nem mesmo diante do Armagedão". Ou seja, ao capital todo o bolo, à classe trabalhadora só as migalhas.

Sobre o/a autor(a)

Biólogo. Dirigente do Bloco de Esquerda
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