Economia Política da Guerra

porAdelino Fortunato

13 de novembro 2024 - 14:08
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Na última década o clima geopolítico e militar degradou-se como que indicando o caminho para uma nova era. Esta nova era ameaça ter consequências dramáticas no resto do século XXI em termos de perdas de bem-estar, de mortes e de conflitos. E, pior que tudo, o espectro de uma guerra nuclear.

Na última década o clima geopolítico e militar degradou-se como que indicando o caminho para uma nova era. Esta nova era ameaça ter consequências dramáticas no resto do século XXI em termos de perdas de bem-estar, de mortes e de conflitos, de desvios massivos de recursos para fins militares, desvalorizando fins humanitários ou genericamente civis, induzindo mudanças potenciais na natureza dos regimes políticos das diferentes sociedades, que podem condicionar as próprias liberdades democráticas. E, pior que tudo, o espectro de uma guerra nuclear. Apesar de instituições internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI), terem dedicado alguma atenção aos conflitos económicos levantados pela emergência da China como grande potência, ou às perturbações criadas pela guerra entre a Rússia e a Ucrânia, a verdade é que é a investigação sobre a economia política da guerra é escassa.

O ponto de partida é o peso conquistado pelo setor da defesa e pela indústria militar que o alimenta, associados a uma ideologia belicista que influencia as políticas públicas das principais potências económicas e militares, com destaque para os Estados Unidos da América. A grande potência económica e militar do século XX construiu um Complexo Militar Industrial com profundas ramificações no sistema político, a tal ponto que grande parte dos gastos do governo federal em 2023 destinaram-se ao orçamento de defesa e militar. Dir-se-á que este é o preço que paga por ser o grande impulsionador da NATO e da governação militar do mundo. De facto, no ano de 2022, os EUA gastavam mais com o seu orçamento de defesa que todo o resto do mundo. Porém, uma observação mais profunda deste fenómeno não pode ignorar argumentos de natureza económica que se adicionam às tradicionais justificativas de ordem política e militar para a relevância adquirida nas últimas décadas pelo Complexo Militar Industrial.

O argumento económico mais convencional sustenta que mais gastos públicos com a defesa e a indústria militar conduzem a menos dotações para objetivos de outra natureza, nomeadamente aqueles que se prendem com dimensões estritamente civis. É o famoso argumento da escolha pública entre “armas ou manteiga” (Guns or Butter). Porém, ultrapassando o caráter estático deste raciocínio (um bolo constante de recursos públicos a ser repartido entre gastos militares e não-militares) poderemos entrar num outro quadro que nos reserva surpresas nem sempre agradáveis. Já a famosa economista Joan Robinson escrevia em 1972 que “O mais conveniente para um governo é gastar no seu armamento. E assim nasceu o complexo militar industrial”. As despesas militares (como outro tipo de despesa pública) têm um impacto potencial positivo sobre o crescimento do emprego e da produção que se compagina com aquilo que Keynes destacou nos anos 30 como recomendações de política económica para estimular a busca do pleno-emprego e do crescimento económico. Keynes, ele próprio, foi um lutador contra as perspetivas de guerra que se destacavam no período “entre as duas guerras”, e as suas propostas para evitar o desemprego massivo e a depressão económica inscreviam-se nessa lógica. Mas, ninguém pode garantir que as melhores intenções sejam cativadas pelos destinos menos recomendáveis.

A mesma Joan Robinson disse: “Hitler já tinha descoberto como ultrapassar o desemprego antes de Keynes ter descoberto a sua justificação para a ocorrência do mesmo”. Nos anos 30 a economia de guerra nazi restaurou o pleno-emprego na Alemanha, entre 1939 e 1941 o rearmamento da economia americana deu um forte impulso ao emprego e ao crescimento económico e o mesmo aconteceu com o envolvimento americano na II Guerra Mundial. Por seu turno, a desmobilização que se seguiu à guerra, em 1946, rapidamente trouxe o desemprego de volta, porém, a Guerra da Coreia e a entrada no clima da Guerra Fria ficaram associadas à ideia de prosperidade e de pleno-emprego. Ou seja, mesmo correndo o risco de algum simplismo e de desprezo por outros fatores explicativos do funcionamento da economia capitalista ou de natureza política, a verdade é que os factos acabaram por facilitar a captura do keynesianismo básico pelos argumentos que justificam a necessidade de criação do Complexo Militar Industrial e a sua expansão criou o poder de lóbi que fez dele um modelo que se impôs a outros setores de atividade económica. Alguns autores chamam a isto a Tragédia do Militarismo Keynesiano.

A partir dos anos 60 o Complexo Militar Industrial tornou-se uma “instituição” instalada e incontestada da economia americana com potencialidades que vão muito para além das que se prendem com a criação de emprego e o arrastamento do crescimento económico. Ele tornou-se um dos motores dinamizadores do progresso tecnológico, promovendo “indústrias nascentes” e tecnologias experimentais para fins militares, mas que são facilmente transferíveis para o setor privado. A lista de exemplos é infindável, dando conta de como a política industrial americana se articulou com o Complexo Militar Industrial para salvar a ideologia oficial liberal, segundo a qual a iniciativa privada não deve beneficiar de subsídios ou de outras medidas de apoio vertical por parte do Estado. A verdade é que eles são canalizados por intermédio desta máquina de transformação da investigação para fins militares em inovações que ficam disponíveis para toda a economia.

Basta recordar a origem de tecnologias como as comunicações por satélite, a microeletrónica, os microchips, a robótica ou a internet para se ter uma ideia acerca do papel determinante da “dupla utilização” das despesas militares na geração de mudanças nas economias contemporâneas. Também aqui a sequência dos acontecimentos históricos acabou por legitimar este modelo Dinâmico de Militarismo Keynesiano no contexto da Guerra Fria, da descoberta da Bomba Atómica, da “corrida aos armamentos”, do bem-sucedido Sputnik soviético de 1957, que justificou toda uma retórica das autoridades americanas em torno da ideia de “atraso” (gap) que teria de ser recuperado por questões de sobrevivência estratégica. Toda esta evolução conduziu-nos até ao drama mais aflitivo dos dias de hoje, a saber, a possibilidade de confrontos para já localizados de guerra nuclear.

As consequências sociais, económicas e políticas deste modelo de progresso técnico comandado pelas pressões de desenvolvimento no plano militar são extremamente importantes. Desde logo porque a sua trajetória fica completamente articulada com as aplicações no plano militar. Mas também porque esta dinâmica tende a reforçar o militarismo e as pressões mais conservadoras na sociedade. Razões de sobra para grandes preocupações com o futuro.

Artigo publicado em “Raio de Luz” a 31 de outubro de 2024

Adelino Fortunato
Sobre o/a autor(a)

Adelino Fortunato

Economista e professor universitário. Dirigente do Bloco de Esquerda.
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