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É proibido proibir… o abuso?

Não adianta chorar lágrimas de crocodilo pela situação miserável de milhares de trabalhadores imigrantes, nalguns casos a roçar o trabalho escravo, se se continuar a alimentar este modelo.

Ainda com os holofotes sobre Odemira, a Assembleia da República foi chamada a discutir e votar diversas iniciativas legislativas sobre a agricultura intensiva. Ora a vertente económica deste tipo de culturas é inseparável das suas características ambientais e sociais. Não adianta chorar lágrimas de crocodilo pela situação miserável de milhares de trabalhadores imigrantes, nalguns casos a roçar o trabalho escravo, se se continuar a alimentar este modelo.

O primeiro diploma foi o projeto de Lei 850/XIV do Bloco de Esquerda, que regulamenta a instalação de culturas agrícolas permanentes e culturas protegidas (estufas, túneis e estufins), definindo medidas de monitorização e minimização de impactos ambientais e preservação de ecossistemas. Entre outros itens, proíbe a colheita mecanizada no período noturno, responsável pelo extermínio de milhares de aves; propõe a constituição de uma carta nacional de ordenamento e instalação de culturas permanentes; de Planos de Paisagem em todos os aproveitamentos hidroagrícolas públicos; o ajustamento do preço da água em regadios públicos, com um desconto de 25% para as explorações reconhecidas com o Estatuto da Agricultura Familiar; licenciamento prévio junto das Câmaras Municipais e Direções Regionais de Agricultura de novas explorações, replantações e adensamentos de culturas permanentes em regime intensivo e superintensivo, assim como a instalação de novas áreas de culturas protegidas (estufas, túneis e estufins); a elaboração do Cadastro Agrícola deste tipo de explorações; Contraordenações e Regime Transitório.

Como seria de esperar, este projeto de Lei esteve sob ataque furioso da direita – PSD, CDS, IL, Chega – da CAP e dos representantes do agronegócio, como a Olivum

Como seria de esperar, este projeto de Lei esteve sob ataque furioso da direita – PSD, CDS, IL, Chega – da CAP e dos representantes do agronegócio, como a Olivum. Também o deputado do PS eleito por Beja, Pedro do Carmo, arvorado campeão do mundo rural, se juntou ao coro da direita com uma argumentação no mínimo curiosa: projetos como os do Bloco só sabem proibir, proibir, proibir, quando a agricultura precisa é de estímulos – como se 90% de fundos da PAC consumidos pelo latifúndio de sequeiro e de regadio ainda fossem pouco.

Ao ouvir em direto as palavras do deputado pedro do carmo, senti-me transportado no espaço e no tempo, mais de 50 anos, ao reinventar duma das palavras de ordem mais célebres do maio de 1968: É proibido proibir! Quem diria: o fogoso deputado baixo-alentejano convertido num soixante-huitard serôdio… O problema é que não estamos a falar de proibições autoritárias da moral burguesa decadente, rejeitada pelos jovens revolucionários do Maio de 68, mas sim de monoculturas intensivas e da agroindústria que passam por cima de tudo em nome do lucro.

Sim, é preciso proibir os abusos, impor regras a quem só conhece o seu livre arbítrio, ordenar o caos económico, social e ambiental que ameaça a vida de todos nós e o próprio planeta. Regulamentar, ordenar, licenciar são ou deviam ser conceitos comuns duma sociedade civilizada e democrática. Uma moratória à instalação de novas monoculturas ou de estufas significa tão só parar para pensar à beira do precipício; não se trata de arrancar plantações, mas sim de um plano de transição ecológico que combata as alterações climáticas, faça respeitar os PDM e o ordenamento do território, salvaguarde distâncias mínimas às habitações e às escolas, etc. Por isso as autarquias locais deverão ter, em conjunto com as DRA, uma palavra decisiva no licenciamento de novas explorações agrícolas e agroindustriais.

 

Mas o debate parlamentar trouxe ainda outras curiosidades. Além do voto contra da direita e do PS, registe-se a abstenção do PCP na proposta de lei do Bloco que contou com votos a favor do PEV, do PAN e das deputadas independentes. Na mesma sessão, propostas de alteração do regime jurídico dos Estudos de Impacto Ambiental do PCP e do PEV tiveram o voto favorável do Bloco de Esquerda e do PAN mas, como de costume, foram chumbadas pelo PS e pelos partidos de direita.

Se estranhei a abstenção do PCP, fiquei estupefacto com o voto deste partido contra o Projeto de Lei 821/XIV do Bloco de Esquerda que “proíbe a utilização de aviões para pulverização aérea e restringe o uso de equipamentos de pulverização de jato transportado em zonas sensíveis, aglomerados habitacionais e vias públicas”

Se estranhei a abstenção do PCP, fiquei estupefacto com o voto deste partido contra o Projeto de Lei 821/XIV do Bloco de Esquerda que “proíbe a utilização de aviões para pulverização aérea e restringe o uso de equipamentos de pulverização de jato transportado em zonas sensíveis, aglomerados habitacionais e vias públicas”. Confesso que o PCP me estava a deixar baralhado, até ouvir a intervenção do deputado João Dias demarcando-se das propostas “proibicionistas” do Bloco com o argumento espantoso de que os grandes interesses conseguem sempre dar a volta, mas os pequenos não têm alternativa…

Francamente, João! Estamos a falar de pulverizações aéreas… Alguém viu pequenos agricultores a pulverizarem de avioneta? Se o assunto não fosse sério, apetecia-me perguntar se o João Dias inventou uma nova estratégia para dinamizar o aeroporto de Beja?

A pulverização aérea não é utilizada nos olivais e amendoais, pelo menos até hoje, mas sim nos arrozais do Vale do Sado que não são propriamente uma zona de pequena propriedade. Aí lembrei-me que a Câmara de Alcácer tem presidência PCP, mas resolvi parar o raciocínio: tudo isto é mau de mais… Em nome da coerência contra o latifúndio que sempre reconheci ao PCP, prefiro pensar que se tratou de uma escorregadela para-lamentar.

Por último, em 1 de Junho foi discutida a petição de milhares de cidadãos em defesa do Parque Natural do Sudoeste Alentejano e Costa Vicentina, ameaçado pela agricultura intensiva e submerso num mar de plástico e contentores. O Projeto de Resolução 820/XIV do Bloco de Esquerda, que acompanhou esta petição, “recomenda ao Governo a recuperação da biodiversidade do PNSACV e a transição ecológica da agricultura do perímetro de rega do Mira”. Com o chumbo garantido pelos votos da direita, o PS (seguido pelo PCP) pôde abster-se neste projeto de resolução.

Só espero que a moda do abstencionismo e do “antiproibicionismo” não pegue…

Crónica no programa “Visão dos Tempos” da Rádio Pax (101.4) – Beja, a 15 de junho de 2021

Sobre o/a autor(a)

Dirigente do Bloco de Esquerda
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