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É possível falar de gentrificação e Ensino Superior na mesma frase?

A oferta de alojamento estudantil em Portugal tem aumentado exponencialmente através do mercado privado. Nem por isso o preço do alojamento para estudantes tem descido, antes pelo contrário.

Nos perímetros dos grandes campos universitários e nos centros das principais cidades portuguesas nascem novos empreendimentos de natureza privada. São alojamentos dedicados a estudantes apetrechados com quartos com cozinha, zonas de convívio, salas de estudo, zona de ginásio e ar livre, bar e segurança à porta. O preço praticado por cada um dos quartos nestes espaços alterna consoante a cidade, a qualidade da oferta privada em questão, a localização e os serviços que presta. Mas há um denominador comum entre praticamente todos eles, é que talvez 1% da população jovem portuguesa esteja habilitada a pagá-los.

Os adeptos do mercado livre enquanto solucionador do grave problema da habitação dir-nos-ão que são tudo boas notícias. O “mercado” expande-se, está preparado para receber os famosos nómadas digitais e ainda dinamiza uma economia que se quer global e competitiva. Há, sobre essa matéria, muitas falácias que mereciam ser desmontadas. Uma delas é tão incomodativa que não precisa de grande explicação. A oferta de alojamento estudantil em Portugal tem aumentado exponencialmente através do mercado privado. Nem por isso o preço do alojamento para estudantes tem descido, antes pelo contrário. Ao contrário do que a teoria liberal da oferta e da procura tenta comprovar, não é o aumento da construção que resolve um problema do preço da habitação. E tanto no caso da habitação em geral como no caso particular do alojamento estudantil, é a ausência do papel do Estado no setor que permite a especulação tomar conta de um direito tão fundamental como o de ter um quarto para viver na cidade onde se estuda.

O que é que tudo isto tem a ver com o papel das Instituições de Ensino Superior (IES)? À partida, basta apontar o dedo à ineficácia do Governo, chutar o problema para as autarquias e outras instâncias de decisão política e os dirigentes das Universidades e Politécnicos podem dormir descansados. Não está na sua esfera resolver um problema tão grande como o da gentrificação das cidades onde a instituição que governam está inserida. Será mesmo assim?

A premissa acima descrita estaria correta se cada uma das IES não fosse também agente ativo neste brutal processo de gentrificação das cidades. O subfinanciamento do Ensino Superior e a sua atual arquitetura institucional não só convidam como premeiam a procura de novas fontes de financiamento próprias. Num quadro económico onde a eterna promessa dos investimento avultados por parte de grandes empresas tecnológicas em investigação científica não se cumpre, os altos dirigentes das IES viram-se para uma política simples e altamente rentável. Redesenharam as ofertas formativas de forma a que o público alvo passe a ser o estudante internacional com capacidade para pagar duas, três, quatro, cinco vezes mais o valor das propinas que qualquer estudante nacional consegue suportar. Ao mesmo tempo, desresponsabilizam-se por investir em mais alojamento público e nessa tarefa contam até com a ajuda do Governo do Estado Central, que alinha na mesma política de assobiar para o lado. Em nome do aumento de receitas, temos IES a alinear património no centro das cidades que, mais tarde, se transforma num hotel ou num qualquer outro empreendimento turístico. A famosa “internacionalização do Ensino Superior” tem assentado mais ou menos nisto. Nada tem a ver com a colaboração institucional com Universidades estrangeiras. Hoje, não há muita diferença quando ouvimos as prioridades de alguns dirigentes máximos de IES e CEOs de empresas. Pedem menos Estado, mais empresas dentro da Academia.

Lá se foi o pergaminho da liberdade científica, o que o país precisa é de continuar a produzir mão de obra altamente qualificada para que as empresas possam usufruir dela sem obrigação de nenhuma contrapartida. E sim, se possível, tendo poder de alterar currículos e aprendizagens de modo a adequar melhor o que se aprende como o aumento da sua produtividade.

No dia em que houver coragem para avaliar seriamente o sistema de Ensino Superior Público em Portugal, talvez consigamos fazer uma leitura diferente sobre o papel do Regime Jurídico das Instituições de Ensino Superior, que vigora desde 2007 e nunca foi realmente avaliado. É a aplicação do Modelo Fundacional que parabeniza o Reitor (que se transformou num CEO académico) que aumenta propinas porque arrecada mais receita própria e penaliza quem prefere defender o Ensino Superior enquanto serviço público, gratuito e universal. É o convite a empresas para participarem na gestão da instituição enquanto são eliminados dos cadernos eleitorais para os seus órgãos os precários da investigação. É o aparecimento das ofertas de mestrados que custam dez mil euros para justificar a necessidade de uma gestão que se livre do Estado que só quer “nivelar por baixo”.

O masterplan é tornar o Ensino Superior Público um produto apetecível para uma classe social de ricos que, neste ecossistema que gentrifica e privatiza o acesso a um serviço público, ainda utiliza a sua influência de classe para apontar o dedo ao quão “público” ainda são as Universidades portuguesas, como se desse fardo nos tivéssemos de livrar em nome de um desenvolvimento que só nos expulsa da cidade onde estudamos e nos promete um estágio não remunerado para estampar no CV mais tarde.

Sobre o/a autor(a)

Museólogo, Investigador do CITCEM UP
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